segunda-feira, 23 de novembro de 2015

FOIE GRAS -QUEM PAGA O PATO?

                             
     
Não faz muito tempo, os legisladores municipais de São Paulo aprovaram uma lei que proíbe a produção e comercialização do Fuagrás (em português) na cidade, a bem do interesse público. A iniciativa resultou da mobilização de algumas organizações da sociedade civil, particularmente da Sociedade Vegetariana Brasileira (AVB) e do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, ambos apoiados por ‘celebridades’. A nova regra afetou o consumo e o uso de produtos já adquiridos ou que fossem comprados fora da capital, estabelecendo pesadas multas para os infratores. No bojo, o novo diploma também vedou o comércio de artigos feitos com pele de animais, excluído o couro bovino.

O fígado hipertrofiado de ganso ou pato, in natura ou em forma de patê, é uma iguaria típica francesa, cujo método tradicional de obtenção é conhecido como Gavage, em que os animais são forçados a se alimentar à exaustão (Gaver significa comer ou engordar demasiadamente, em francês). Ativistas se mobilizam em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, a fim de abolir essa metodologia considerada cruel. Argentina, Áustria, Republica Checa, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Irlanda, Israel, Luxemburgo, Noruega, Polônia, Suécia, Suíça, Países Baixos, Reino Unido e Índia já aderiram ao combate da prática milenar. Atualmente, o Brasil possui apenas três fabricantes de Foie Gras: o Chez Pierre em Itu (SP), o Agrivert em Valinhos (SP) e a Villa Germânia em Indaial (SC). Segundo os proprietários, a lei paulistana prejudica empresas pequenas que deveriam ser estimuladas em plena época de crise. Destinada a um mercado minúsculo, a iniciativa não teria utilidade prática para a população em geral.

A seguir à promulgação da medida, a Associação Nacional dos Restaurantes (ANR) apelou juridicamente contra ela e a Justiça suspendeu-lhe provisoriamente a vigência até o julgamento final sobre a constitucionalidade. Além dos representantes de restaurantes, vários chefes de cozina brasileiros, paulistas em maior número, todos de reconhecido prestígio e vinculados à culinária francesa, investiram publicamente contra a decisão municipal, classificando-a também como absurda, sem sentido ou qualquer embasamento. Utilizando-se de argumento de defesa não totalmente palatável, os indignados afirmavam que outros animais como os porcos de granja, apenas para citar um exemplo, padecem tratamento e morte muito mais cruéis do que os patos e gansos. Logo, em tese, as aves poderiam ser poupadas da medida municipal saneadora e continuar sendo imoladas em beneficio da gastronomia universal.  

Segundo outros especialistas envolvidos no problema, como a Associação dos Profissionais de Cozinha (APC), a criação e engorda de patos e gansos para a produção do Foie Gras não é mais feita como antigamente, já que os métodos modernos de criação, engorda e abate prescindem do sofrimento das aves, apontado como verdadeira crueldade.  Na França, por exemplo, o consumo da iguaria já não faz parte do cotidiano (até pelo preço, eu imagino), mas é quase sagrado quando se trata de comemorações especiais, aniversários e festas familiares. Não seria justo, portanto, desrespeitar valores culturais que adquiram cidadania e são hoje um patrimônio reconhecido pela UNESCO. Aliás, desde 2010, todo o conjunto da gastronomia francesa foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, uma decisão inédita que abrangeu pela primeira vez a culinária, as bebidas e os materiais utilizados pelos franceses para sua elaboração.
 
Conforme, pois, o argumento da APC, cada qual tem o direito inalienável de escolher o que vai consumir sem ter a sua liberdade castrada por qualquer meio. Seus representantes assinalam, por exemplo, que depois de quase dois anos de proibição, a Califórnia voltou a liberar a venda de Foie Gras em janeiro de 2015. Recordam que a restrição legal havia sido apoiada por Paul McCartney, que intercedeu pessoalmente ao então Governador Arnold Schwarzenegger para que a impusesse, o que foi feito a partir de 2013, no intuito de impedir a produção e comercialização de um produto de luxo que serviria apenas para alimentar vaidades. O que houve então? Um juiz federal decidiu que a proibição imposta na Califórnia era inconstitucional, porque interferia em uma lei federal que regula produtos avícolas. Resultado: o apreciado produto pôde ser novamente vendido, mas não produzido no Estado. Chicago, a primeira cidade nos Estados Unidos a proibir o consumo de Foie Gras, também voltou atrás. A proibição na chamada ‘Windy City’ durou de 2006 a 2008. Esses antecedentes foram apontados pelos indignados paulistanos para refutar a medida coercitiva da prefeitura, considerando que a produção pode ser proibida no município, mas a comercialização, não. É de competência exclusiva da União.

Em meio às delongas judiciais, nunca houve tamanha procura pelo Foie Gras em São Paulo, como nas semanas que se seguiram à promulgação da lei, não obstante os preços regulares do produto variem entre 300 e 450 reais o quilo. Os estoques das revendedoras e empórios tradicionais da cidade baixaram rapidamente. Nos restaurantes da maior e mais rica capital do País, nos quais a iguaria é fixa no cardápio, logo começaram as preocupações quanto à queda de faturamento, relacionada igualmente ao consumo do Magret e do Confit de Canard, que dependem da gordura do pato para ser elaborados.
O assunto ganhou maior fôlego com as notícias de que o Paraná também iria aderir à proibição a partir de proposta semelhante à da Câmara Municipal de São Paulo. Tramitando há tempos na Assembleia Legislativa do Estado, visava a banir o consumo crescente do Foie Gras nos restaurantes paranaenses. Cogitou-se na época que a medida estaria bem mais relacionada ao consumo do Chester, um exemplar híbrido (na verdade, não existe na classificação avícola) que é resultado do cruzamento de oito linhagens de galinhas. A cobiçada ave natalina é alimentada também de forma considerada abusiva e, segundo consta, mal consegue andar às vésperas do abate, de tão pesado fica o seu peito.

Apesar dos vaivéns conceituais e jurídicos em busca de tratamento definitivo para o assunto, a julgar pela tenacidade e a capacidade mobilizadora dos ativistas de plantão, parece certo que a comercialização do Foie Gras no Brasil poderá em breve tomar novo rumo e o desfrute da iguaria ter os seus dias contados, particularmente nos grandes centros consumidores. Adeus, portanto, aos célebres Turnedôs Rossini e outros pratos clássicos e contemporâneos preparados com o fígado gordo de pato ou ganso, de apreciada consistência amanteigada. A menos que os apreciadores endinheirados apelem, como sói acontecer, para o abastecimento regular via mercado negro ou viajem ao exterior a fim de encontrar, em países onde o produto é consumido sem restrições, uma forma de saciar o apetite e manter a tradição gastronômica.

                           

Na França, por exemplo, essa opção é certa, com base em argumentos que merecem ser assinalados em apoio aos gourmets e gourmands confessos de todo o mundo, que não se permitiriam facilmente prescindir da tradição. Esta não é nova, de fato, e remontaria à Antiguidade segundo os estudiosos. Os egípcios, de acordo com alguns baixos-relevos expostos na tumba de Mereruka na necrópole de Saqqara, já alimentavam com cereais abundantes as suas aves migratórias para lograr fígados engordados, particularmente os gansos. Utilizavam-se do produto para consumo regular ou como presente aos visitantes de destaque.

A prática que remonta a 2.500 anos antes de Cristo passou à Grécia e seu entorno mediterrâneo, chegando depois à Roma imperial. Os descendentes de Rômulo e Reno assimilaram o costume de consumir fígado engordado em Alexandria e o mantiveram, sobretudo pela inspiração do gastrônomo Apício. O historiador Plínio, o Velho, denominou a iguaria de iecur fictatum, que em Latim significa literalmente ‘fígado de figueira’. Isto porque as aves eram superalimentadas com figo. O termo e sua origem ficaram tão consagrados que na formação das línguas neolatinas seguiu seu curso: fígado em português, foie em francês, higado em espanhol, ficat em romeno e fegato em italiano.

Sabe-se que na Idade Média os gansos e patos foram temporariamente banidos da culinária europeia. Embora naquele período as carnes mais consumidas fossem o porco e o cordeiro, há registros de que na antiga Gália Transalpina, a França atual, a criação de aves silvestres se manteve presente e foi preservada a tradição do Gavage. Segundo alguns, com o contributo dos hebreus, que aperfeiçoaram a técnica a partir da colonização romana na Judeia.

Durante a diáspora, os judeus teriam então levado consigo a tradição à medida que migravam rumo ao Norte e ao Oeste da Terra Santa. O Kashrut, repositório das regras alimentares e da dieta judaica, os proibia de usar óleo feito com gordura suína para cozinhar e prescindia da manteiga como alternativa, já que era vedado misturar carnes e laticínios. As opções registradas pela História foram o óleo de gergelim na Babilônia e o azeite de oliva no Mediterrâneo, ambos caros e difíceis de conseguir no cotidiano. Foi daí que os judeus passaram a usar gorduras de aves já agora domesticadas, sobretudo dos fígados hipertrofiados para tal propósito, com o concurso adicional do milho trazido das Américas. Essa tese sobre a decisiva contribuição judaica ao consumo tradicional do Foie Gras na Europa, particularmente na França, encontra abrigo em vários livros antigos, como ‘Opera’ de Bartolomeu Scappi e ‘Kochbuch’ de Max Rumpolt, ambos do século XVI, nos quais já estão incluídas referências a receitas de patês e musses elaborados com a iguaria.

A tradição enraizou-se e hoje a França contribui com 80% da produção mundial de Foie Gras, com mais de trinta mil pessoas envolvidas (mulheres, na maioria), sobretudo na região de Périgord, com denominação de origem controlada (DOC). Tudo segundo métodos tradicionais, atualmente amenizados e reconhecidos pela União Europeia. Embora possam manter-se certos procedimentos de engorda, considerados abusivos e até cruéis conforme o foco dos ativistas internacionais, a maioria dos fabricantes europeus já não utilizariam os famosos tubos metálicos ou plásticos pelos quais a ingestão irregular de alimentos era praticada, aproveitando-se da elasticidade das gargantas dos onívoros (que são capazes de engolir peixes inteiros) e promovendo o armazenamento forçado de abundante comida nos seus esôfagos ou papos, para posterior digestão no estômago. Para o ganho substantivo de peso, esse processo perdurava nos últimos 12 a 15 dias de vida dos patos e durante 15 a 18 dias, no caso dos gansos.
                                 

Não conheço o antigo Condado de Périgord. De acordo com o que vi e testemunhei na única estância uruguaia produtora de Foie Gras e outros elaborados de tradição francesa para o consumo local (Campo de los Galos, em referência à origem do casal proprietário), as diferentes aves são criadas soltas e se alimentam de maneira normal. Ganham peso rapidamente, mas esse processo pode ser reversível, por razões as mais variadas. Assim acontece com todos os animais, tanto os que vivem em estado selvagem quanto aqueles que são domesticados e destinados ao abate para consumo humano. Acumulam gordura para o inverno e depois a perdem naturalmente.
Como o ideal é ter exemplares com o maior peso possível, por razões econômicas óbvias, sobretudo no caso de gansos e patos, destinados à produção de Foie Gras e outras iguarias que dependem de músculos e órgãos agregados de alto valor lipídico, a complementação da engorda é tida como indispensável. As aves escolhidas são então confinadas individualmente em pequenos currais ao ar livre e induzidas à ingestão de amido (basicamente milho verde, cozido, para facilitar a digestão, torná-la menos agressiva e favorecer o aumento mais rápido do peso médio do fígado em até 50%), além de diferentes tipos de cereais in natura e rações de alto valor nutritivo a cada 6 horas, durante os últimos quinze dias, em média, antes do abate. A comida em excesso é transformada em gordura, concentrada sobremaneira no fígado que passa a pesar entre 400 e 700 gramas.
Como a ave está confinada e se alimenta apenas do pouco que encontra no entorno reduzido, quando recebe o alimento super-reforçado, sempre na mesma hora, condiciona-se a comer avidamente tudo que se lhe oferece, sempre em grandes quantidades, para compensar os períodos de quase jejum. Da primeira vez a ave pode ficar assustada, mas depois abre o bico voluntariamente pedindo mais comida. Desde logo, sem a utilização de qualquer instrumento de tortura indutora que pudesse sugerir os espetáculos grotescos sempre associados ao Gavage tradicional do passado, já banido em várias jurisdições produtoras pelo mundo.

Realizado, portanto, dentro dos padrões indicados, os produtores uruguaios garantem que o processo de engorda não faz mal aos animais nem gera os chamados hormônios de estresse, já que se assemelha ao que ocorre com eles na natureza durante a troca de estações. Migratórias por essência, as próprias aves produzem o Foie Gras sozinhas. O processo indutor em cativeiro é simplesmente uma reprodução do que o instinto lhes determina. Como acontece atualmente na França ( HYPERLINK "http://www.foiegras-perigord.com" http://www.foiegras-perigord.com), tudo sob um selo (indicação geográfica protegida - IGP) que certifica a criação e garante a qualidade do produto final, respeitando regras estipuladas e rigorosas.

No Uruguai, como na maioria dos países que o apreciam, o Foie Gras pode ser saborizado com trufas e licores. Quente ou frio, de excelente textura e sabor marcante, é comumente servido com pães e torradas, acompanhado de saladas e harmonizado com vinhos adocicados de sobremesa ou secos, e até mesmo de espumantes, dependendo do paladar do consumidor.

Afinal, quem paga o pato? Por certo, o assunto é extremamente controverso e desperta discussões apaixonadas. Creio que prevalecem sem a adesão de maiorias expressivas, tanto aqueles que se mobilizam pública e irrestritamente em favor da proteção e do tratamento digno de todos os animais quanto aqueles que se empenham nessa mesma luta, mas com objetivos seletivos e até contraditórios (veja-se o caso da referida lei municipal paulistana, cuja aprovação só se tornou factível quando os parlamentares vinculados ao setor pecuário excluíram o couro bovino das restrições sobre a utilização de peles animais). Talvez por isso, contra os eventuais radicalismos e contrassensos de ambos os grupos, posicionem-se outros, empenhados simplesmente em defender a liberdade individual e um tratamento equânime para todos os aspectos da polêmica. Assegurada a inalienabilidade dos direitos, portanto, o consumo atual e futuro do Fuagrás pelo mundo continuará a depender do gosto e da consciência de cada um.
                               
     
       Silvio Assumpção