Corned Beef: a homenagem mundial à iguaria uruguaia
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, também
chamado Patrimônio Cultural
Intangível da Humanidade, e antes designado Patrimônio
Oral e Imaterial da Humanidade, é uma distinção criada em 1997 pela UNESCO com o fim de proteger e atestar
o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial, abrangendo as expressões culturais e tradições que um
grupo de indivíduos preserva em respeito da sua ancestralidade, visando às
gerações futuras. São exemplos de patrimônio imaterial: os saberes,
os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações,
festas e danças populares, lendas, músicas, costumes e outras tradições.
A cada dois anos são
escolhidos esses bens a partir das candidaturas apresentadas pelos países
signatários da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. A
primeira lista de eleitos foi divulgada em 2001,
totalizando hoje cerca de 90 bens imateriais inscritos, oriundos dos cinco
continentes. Ao Brasil foram outorgados reconhecimentos dessa natureza,
particularmente à capoeira, ao frevo, ao fandango e ao samba de roda, entre
outros.
Outro conjunto mais
antigo de destaques refere-se ao conceito de Patrimônio Mundial da
Humanidade, relacionado a um local (como uma floresta, montanha, lago, ilha,
deserto, monumento, construção, complexo ou cidade) definido também pela UNESCO como de importância cultural ou
física especial para o mundo. A
lista é mantida pelo Programa do Patrimônio Mundial, administrado por Comitê
composto por 21 países-membros eleitos.
O programa, criado por
convenção internacional em 1972, cataloga, nomeia e conserva locais de
excepcional importância cultural ou natural para o conjunto da humanidade. Sob
certas condições, os lugares listados podem obter fundos da organização gestora
com fins de conservação. Desde o ano fundacional, 190 países ratificaram a
convenção, tornando-se um dos mais respeitados instrumentos internacionais da
atualidade.
Em 2013, 981 locais
estavam listados: 759 culturais, 193 naturais e 29 mistos, em 160 países. O
Brasil possui uma lista importante de escolhas, feitas mediante critérios rigorosos
que são analisados durante um longo período de avaliação. Há hoje 19 itens
inscritos na relação da UNESCO, em diferentes partes do País.
Ao Uruguai, que já
logrou incluir o “casco histórico” de Colônia
do Sacramento como bem de preservação universal, desde 1997, se confere agora
uma nova homenagem, mais precisamente relacionada à sua produção de carne, o
principal dos cinco produtos gourmet mais destacados do país platino. Mas, de
uma forma bastante singular.
Em 2015, foi afinal inscrito
na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade o chamado “Paisaje Industrial Fray
Bentos”, localizado na capital do Departamento de Río Negro. Trata-se de um complexo
integrado pelas instalações do velho Frigorífico ANGLO, englobando seus
ancoradouros sobre o Rio Uruguay, um matadouro, áreas de pastagem para o gado,
uma escola e as residências dos trabalhadores que um dia operaram aquele grande
empreendimento fabril, resultado de investimentos estrangeiros que apostaram
nas vantagens comparativas do continente americano nos séculos XIX e XX.
Criado em 1862 como frigorífico
“Liebig Extract of Meat Company”, de origem alemã e
dedicado ao extrato de carne, tornou-se depois parte das operações na América
do Sul de uma empresa inglesa, que em 1924 o comprou e o denominou ANGLO. À
margem do empreendimento, se instalou em 1865 a
primeira rede de eletricidade do Uruguai. Nos seus últimos anos
de esplendor, quando a empresa processava 1.600 bovinos,
6.400 cordeiros e 4.800 frangos, além de patos e porcos, em 100 tipos de
conservas, empregando 5.000 funcionários, numa população adjacente de 15.000
habitantes, passou à propriedade do Estado uruguaio em 1968,
sob a denominação de “Frigorífico Nacional”, até o encerramento definitivo das
atividades em 1979.
A grande motivação da
escolha da UNESCO, que associa essa fábrica ao criterioso galardão de Patrimônio
Mundial da Humanidade, está relacionada ao seu produto identidade, que
percorreu o mundo e serviu de referência alimentar para diversas gerações de
famílias em diferentes partes do planeta, de forma absolutamente
inquestionável: o “corned beef”, tipo de carne vacuna cozida e enlatada, que
percorreu o mundo. Quem lutou nas duas Guerras Mundiais ou sobreviveu fora dos
campos de batalha àqueles tristes dias, jamais poderá esquecer-se desse produto
de utilização quase generalizada na época.
Conta-se no Uruguai,
a propósito, que durante visita oficial ao país, em 1999, o Príncipe da Gales recordou
num discurso que jamais poderia esquecer-se do consumo habitual desse produto
durante sua infância. Por certo, várias pessoas da idade de Charles de Windsor ou
da mesma geração, sobretudo na Europa, poderiam dar o mesmo testemunho, tamanha
foi a importância do chamado “corned beef” uruguaio para sua sobrevivência. E a
cinematografia também ai está para comprová-lo: são as velhas latas do alimento
que aparecem em películas como "Gallipoli",
de Peter Weir (1981), sobre a batalha de 1915 na península turca, protagonizada
no cinema por Mel Gibson e Marc Lee, e em "O Paciente Inglês", de
Anthony Minghella (1996), ambientada pela Segunda Guerra e protagonizada por
Ralph Fiennes.
Fray Bentos, portanto, logrou o
merecido reconhecimento internacional por haver se transformado num fiel e
singular testemunho do intercambio de valores e de relações humanas entre a
Europa e a América do Sul naqueles tempos difíceis, cujos efeitos foram sentidos
por toda a humanidade. Em meio a esses vínculos de diferentes culturas,
marcadas pela complementaridade, a UNESCO encontrou os méritos necessários para
declarar o complexo fabril mais importante da cidade uruguaia, o antigo ANGLO,
como digno de relevância mundial.
E o mais importante:
depois de haver sido considerada a “cozinha do mundo” durante o longo período
das conflagrações bélicas do século XX, de 1914 a 1945, quando abasteceu de
carne o Império Britânico e seus aliados, Fray
Bentos, de 25 mil habitantes e localizada a 300 km de Montevidéu, retoma a sua
antiga posição de destaque e volta a exportar o célebre “corned beef” que a fez
famosa no passado.
Curiosamente,
agora é o grupo brasileiro associado à “Marfrig Global Food”, o maior produtor
de carne bovina do mundo, que retoma a produção e a exportação da carne
uruguaia enlatada, não mais nas velhas instalações da ANGLO (transformadas em
1989 no Museo de la Revolución Industrial), mas numa outra fábrica de iguais
dimensões instalada em Fray Bentos, a única no Uruguai que realiza hoje o
processamento de carne em conserva. Depois das dificuldades enfrentadas logo
após a sua instalação piloto, em plena crise econômica mundial de 2008, os
novos empreendedores seguiram adiante com o projeto exportador, tendo como
principal destino nada mais nada menos do que o Reino Unido, onde o consumo do
“corned beef” continua arraigado na população. As latas agora têm 10 libras
(4,5 kg), fabricadas por uma centena de orgulhosos funcionários, a maioria deles
constituída de filhos, netos, bisnetos e sobrinhos dos empregados da antiga
ANGLO.
Por certo,
há dúvidas de que o príncipe William, primogênito de Lady Diana, assim como seu
irmão, alguma vez tenham provado o “corned beef”, tão fundamental na
alimentação de seu pai e avós britânicos. Mais ainda, que o herdeiro George e,
futuramente, a princesa Charlote, venham a consumir o consagrado alimento,
sobretudo diante dos avanços gastronômicos logrados pela humanidade e a
excelência dos atuais bifes suculentos oriundos do Uruguai, considerado como o
produtor da melhor carne do mundo.
No entanto,
o que de fato a UNESCO quis homenagear e preservar, com muita justiça, foi o
poder do trabalho do povo uruguaio, que magicamente enlatou e despachou para
milhões, durante dezenas de anos muito difíceis para o mundo inteiro, não
apenas o mugido de suas vacas (há hoje no país cerca de três milhões de
habitantes e mais de sete milhões de cabeças de gado), mas também o grito
tradicional de seus tropeiros e a garra de seus operários, gerando alimento
para toda uma geração de seres humanos que o necessitavam. Merecida escolha!
Silvio Assumpção
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