Gardel - Mitologias de um gênio bastardo - 3° e última parte
3° Parte
por Silvio Assumpção
As datas referidas, portanto, que em 2015 se revestem de especial significado histórico para os tangueros do mundo inteiro, voltaram a alimentar as eternas polemicas entre investigadores uruguaios, argentinos e franceses para determinar de forma conclusiva o verdadeiro berço do eterno Carlos Gardel.
Como pretendeu ressaltar o jornalista Valentín Trujillo, o espírito de Gardel ainda paira sobre vastos territórios, que nem os mapas nem as datas podem circunscrever ou limitar. É assim que, ademais de Tacuarembó e Montevidéu, também será recordado esta semana em Medellín e Buenos Aires, certamente nesta com maior ênfase.
Para desgosto dos uruguaios, o sepulcro da Voz do Tango está no Cemitério de la Chacarita. Embora o Governo uruguaio e Pepe Razzano tenham feito de tudo para enterrá-lo em Tacuarembó, o corpo foi trasladado para a capital argentina com todas as glórias, por iniciativa da mãe do cantor e do testamenteiro de Gardel, Armando Defino, como seu representante legal em substituição a Razzano. Como na época praticamente ninguém duvidada da sua nacionalidade argentina, ainda que adquirida, não se poderia admitir para os seus despojos outro destino, depois de sepultados originalmente em Medellín.
Foi uma longa travessia. O caixão que trazia o que restou de seu corpo calcinado só saiu de Medellín no dia 17 de dezembro de 1935. Foi levado ao Panamá e, de lá, para Nova Iorque, onde chegou em 6 de janeiro de 1936 e foi velado durante uma semana. Depois, escalas no Rio de Janeiro e Montevidéu, antes de desembarcar na Argentina. Afinal, foi recebido com todas as honras governamentais no porto de Buenos Aires e novamente velado no simbólico Luna Park, no dia 5 de fevereiro de 1936.
A Argentina inteira, traduzida em grandes multidões, se inclinou agradecida para despedi-lo no “solo materno”. Fazia sentido, já foi o país onde os dotes excepcionais do músico lhe outorgaram fama inigualável e permitiram projetar-se ao mundo. Delfino preparou devidamente a recepção e as homenagens, divulgando publicamente o último testamento de Gardel, datado de 7 de novembro de 1933 e até então desconhecido, em que ele, de própria letra e tendo assinado no rodapé, assentava: “Soy francés, nacido en Toulouse el día 11 de diciembre de 1890 y soy hijo de Berthe Gardés. Perdono mis deudas...”
Unicamente por aquele testamento, Berthe Gardés gozaria dos suculentos benefícios econômicos emanados das nove películas que Gardel filmou em Paris e Nova Iorque, além das regalias autorais oriundas das 1500 canções por ele gravadas em 800 discos. Um magnífico legado que, desparecida a mãe, passou para as mãos do procurador Armando Defino.
Em 24 de junho de 2015, na capital do Uruguai, se inaugurará um novo monumento de tamanho natural em sua memória, na cidade onde o artista mandou construir em 1933 uma casa, na Calle Pablo Podestá nº 1421 – Barrio Malvín, da qual nunca desfrutou em razão de sua morte repentina e prematura. Com justiça, esse nova escultura suplantará a primeira homenagem dos montevideanos, um busto seu colocado no tradicional Barrio Sur, onde já se cruzavam ruas emblemáticas como “Carlos Gardel” e “La Cumparcita”, esta em homenagem a um verdadeiro hino, que se tornou o mais difundido e executado tango do mundo, cuja melodia foi criada pelo uruguaio Gerardo Matos Rodríguez, em 1915.
Ademais, o bar mais antigo do centro de Montevidéu, o Facal, em torno do qual se reúnem, nas tardes do verão, casais de todas as idades para dançar tango em plena rua, concentrará mais uma vez esta semana os aficionados locais e de passagem pela cidade, em torno daquela que é uma das mais genuínas e originais expressões culturais do Rio da Prata.
Enfim, Gardel será festejado em dois continentes e, por certo, lembrado nos vários recantos do mundo em que atuou, cantou, esteve de passagem ou simplesmente foi admirado. Inclusive no nosso país, embora se diga que ele não tinha grande simpatia pelo Brasil, talvez pelo fato de que sua única visita como cantor, no início de carreira, haja sido um quase fracasso.
De fato, depois da estreia em Montevidéu, há exatos cem anos, o dueto Gardel-Razzano foi convidado a cantar em São Paulo. Chegaram a bordo do SS Infanta Isabel, secundados por integrantes da exitosa Companhia Dramática Rioplatense. Curiosamente, os registros confirmam que o Zorral Criollofoi logo detido em Santos por agentes da polícia de imigração, intrigada pelo sempre controverso tema da identificação pessoal. Ao se defender perante as autoridades, anunciar-se como artista e dizer que ali estava para atuar sob contrato, foi logo considerado meliante e enquadrado como chorro.
Dirimida parcialmente a controvérsia, estrearam em 25 de agosto de 1915 no Teatro Municipal de São Paulo. Seguiram depois para o Rio de Janeiro, onde teve lugar nova apresentação no Teatro Municipal da Cinelândia, em 29 de setembro, além de uma sessão privada para a sociedade carioca, promovida pelo então embaixador argentino Lucas Ayarragaray Viera, na histórica residência diplomática da Praia de Botafogo. Malgrado, pois, o revés inicial, a viagem não foi tão fracassada quanto se reporta, a julgar pelos milhares de admiradores do tango no Brasil atual e a voracidade consumista dos nossos compatriotas na praça de Buenos Aires.
Depois de toda uma vida pessoal polêmica, dos contatos contumazes com o submundo da vadiagem, da prostituição, dos jogos de azar e do turf, Carlos Gardel acabou por consolidar-se em uma posição privilegiada no mundo das artes. O tango e sua voz mais expressiva foram declarados pela Unesco como Patrimônio Mundial Imaterial da Humanidade, respectivamente em 2009 e 2003. A figura e os êxitos do cantor tornaram-se imortais, eternos. O que se espera, contudo, é que não tenha o mesmo destino de eternidade a batalha infindável que o convencimento da maioria dos uruguaios, e simultaneamente dos argentinos, continua travando por sua memória afetiva
Na verdade, nada dessa disputa importa. Comparado ao legado universal doMorocho em prol do tango e sua divulgação, em favor dessa dança a par que desperta sensualidade como nenhuma outra, dessa harmonia musical binária de compassos dois por quatroliderados pelo velho e inconfundívelbandoneón e desse lunfardo criollo que expressa as emoções e tristezas que sentem os homens e as mulheres do povo, daqueles que simplesmente amam e sofrem por amor, nada daquilo importa. O que importa, mesmo, é que Carlos Gardel existiu.
Bravo, Carlitos, e que descanse em paz!
Silvio Assumpção
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