sexta-feira, 30 de outubro de 2015

EÇA: O GLUTÃO REFINADO

O sugestivo título é da jornalista Virginie Leite. Graças a ele, inspirado na publicação recente de Karla Júlia a respeito da lista de compras e de algumas curiosas preferências culinárias de Leonardo da Vinci, neste blogue dedicado à literatura, às artes e à cultura em geral, recordei-me de uma obra lançada há exatos vinte anos sobre as invocações gastronômicas de um dos maiores escritores da língua portuguesa: Eça de Queiroz. Um romancista que, por suas inúmeras citações alimentares, considerava as refeições não apenas como pretexto para reuniões familiares e sociais, mas como recursos para compor uma atmosfera, fazer evoluir a trama, retratar uma época e expor a sua posição em face da realidade, em particular a portuguesa. Um literato que, em Cozinha Arqueológica, já nos idos de 1893, foi capaz de estabelecer um veredito definitivo ao encontro do que pensa qualquer hedonista bem resolvido: “Diz-me o que comes, dir-te-ei o que és”. E que antecipou, desde logo, o papel essencial que a gastronomia desempenharia nos seus livros, nos quais a caracterização dos personagens tinha como elementos fundamentais o vestir e o comer. Ademais, na obra queirosiana, jantares, almoços e cafés servem à representação critica de vários aspectos, como hábitos, sexualidade e moral, da sociedade lusa do século XIX.

                                                               


Cedidos em 1995 os direitos autorais da obra à fundação portuguesa que leva o nome do escritor (e que em 2015 completou 25 anos de existência), os gestores resolveram reeditá-la com uma rouparem renovada que conta, entre outras muito bem apresentadas, com várias fotos das comidas e doces que permearam os seus livros célebres e que inspiraram a autora, a conhecida gastrônoma alentejana Maria de Lourdes Modesto. Numa nova perspectiva, coube a ela a identificação e a divulgação de várias receitas, permitindo assim perpetuar na memória os muitos episódios e cenas em que personagens dos romances queirosianos se refestelam com toda sorte de iguarias, degustam os melhores vinhos e raspam os pratos com avidez.
                                                                           

Trata-se, naturalmente, de Comer e Beber com Eça de Queiroz. Uma preciosidade literária distribuída em mais de cem páginas que por certo dariam ao consagrado romancista um grande prazer de ver, ler e experimentar, considerado que era como um amante da boa mesa e para quem a gula (apesar de incluída entre os sete pecados capitais) é uma das melhores virtudes da existência humana. Lamentavelmente, sua saúde precária não lhe permitia abusar das delícias a que se referia com entusiasmo. Nas cartas à esposa, várias vezes se queixou de males do estômago e do intestino provocados por comidas pesadas. Escrever, portanto, sobre aqueles quitutes sem poder devorá-los como gostaria, deveria ser para ele um grande tormento.

Embora não fosse um cozinheiro de fato, reconhece-se que Eça deixou uma marca indelével na cozinha portuguesa. Residindo fora de Portugal como diplomata, em Cuba, Inglaterra e França, ressentia-se da falta de contato com o país de origem e sentia saudade das iguarias da terrinha. Por isso, talvez, a culinária seja tratada com reverência por seus personagens. Para degustar um prato de bacalhau com pimentões e grão-de-bico, por exemplo, Fradique Mendes tira a sobrecasaca, ataca o pitéu sem igual e adverte os amigos que puxam assunto: “Nada de ideias! Deixem-me saborear esta bacalhoada em perfeita inocência de espírito, como no tempo do senhor Dom João V, antes da democracia e da crítica”.

Mas não é apenas portuguesa a influência detectada nos seus relatos. Morando em Paris, Eça não pôde permanecer isento aos imperativos da realidade cultural nem se furtar a registrar em seus escritos várias delicias de origem francesa, como o “Jambon aux épinards” e o “Barão de Pauillac”, este procedente de uma região do mesmo nome, famosa pela carne de cordeiros ou borregos, como se diz em Portugal.

A partir da nova edição, portanto, o leitor fiel que sonhava ser um dos convivas daqueles banquetes icônicos pode novamente saciar seu desejo, mergulhando nas particularidades dos “Ovos queimados e com chouriço”, dos "Folhados do Cocó"da “Empadas de Rosas ",dos "Bolinhos de Bacalhau", da “Sopa seca de pão com presunto e legumes”, do "Coelho Guisado à moda da Porcalhota" do “Consommé frio com trufas”, da “Cabidela”, da “Galinha afogada em arroz” (Canja) ou do famoso “Arroz de favas”, todos descritos no livro com detalhes de preparação esmerada. Estes dois últimos, aliás, foram os pratos servidos às pressas ao próprio Eça quando pela primeira vez chegou à Pensão Borges, na cidade de Tormes, atual Vila Nova, em plena Região do Douro, para escrever A Cidade e as Serras. E tornaram-se, como se recorda, alguns dos pratos celebrados pelo abilolado personagem Jacinto, com grande destaque.

Por isso, cada uma das receitas do livro de Maria de Lourdes Modesto, uma das cozinheiras mais famosas de Portugal, aparece acompanhada por citações escolhidas pela professora da USP, Beatriz Berrini, grande especialista queirosiana, que oferecem o contexto literário em perfeita coordenação visual e estética, além das sugestões de vinho para a completa harmonização (com preferência pelo Verde, é claro). Para atiçar ainda mais o apetite dos leitores, as fotografias dos serviços elaborados são ambientadas como se estivessem numa mesa do século antepassado. Verdadeira síntese, pois, entre culinária e literatura
.
Para o sucesso da obra, consagrado após vinte anos da primeira edição no Brasil, a pesquisa foi árdua. Obrigou as autoras a consultar vários manuais culinários da época de Eça de Queiroz (1845-1900) e recorrer a tratados bem mais antigos, como o Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria, do século XVI, para o preparo das “Almôndegas indigestas e divinas do tempo das Descobertas”, imortalizadas pela descrição do já citado personagem-título em Fradique Mendes: Memórias e Notas. Além disso, os produtores do livro esmeraram-se em ambientar as imagens como corresponde, recorrendo a antiquários e museus portugueses na busca de elementos decorativos de época e utilizando-se de locais que o próprio escritor frequentava, como o Restaurante Tavares e o Grêmio Literário, em Lisboa.

E não se fica apenas na imaginação, como outrora. Todos os pratos podem ser hoje consumidos, iguaizinhos, no já famoso Restaurante de Tormes, localizado na Freguesia de Santa Cruz do Douro, Conselho de Baião, graças à saudável parceria criada entre o estabelecimento (remanescente da antiga Pensão Borges) e a Fundação Eça de Queiroz.
                                                                                   

Sendo filho de brasileiro, é curioso notar que Eça nunca veio ao Brasil. No início de sua carreira diplomática, até que tentou obter um posto consular na Bahia, mas foi mandado para Havana e aqui nunca esteve apesar dos laços estreitos que preservou com a nossa cultura e vários de nossos literatos ao longo da vida.

A sua primeira ligação ao Brasil foi, efetivamente, a sua ama de leite, Ana Joaquina Leal de Barros, pernambucana. Mas, na realidade, os laços com o nosso país já se podem encontrar antes do seu nascimento. O seu avô, Dr. José Joaquim de Queiroz e Almeida, refugiara-se no Rio de Janeiro, na época das lutas liberais. Na cidade maravilhosa nasceu José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, pai do romancista, em 1820, dois anos antes da Independência brasileira. Regressada a Portugal, a família Queiroz levou um casal de criados africanos, Rosa e Mateus. Foram estes que, mais tarde, acarinharam o pequeno José Maria Eça de Queiroz, lhe cantaram cantigas de embalar e contaram histórias misteriosas do Sertão.


Considerando o apreço dos brasileiros e africanos pela comida e sua preparação, talvez daí, da convivência íntima na própria casa, tenha surgido também esse apelo de Eça aos bons pratos, todos muito bem elaborados e descritos na sua obra com riqueza de detalhes, que permitem a seus leitores dar curso à imaginação e aguçar o paladar. Resgatando-lhe a memória, Comer e Beber com Eça de Queiroz é, pois, muito mais do que um caderno de receitas. É um livro de arte de dar água na boca, literal e literariamente. Vale a pena conferir.

                      Silvio Assumpção

Marcadores: , , ,