EÇA: O GLUTÃO REFINADO
O sugestivo título é da
jornalista Virginie Leite. Graças a ele, inspirado na publicação recente de
Karla Júlia a respeito da lista de compras e de algumas curiosas preferências
culinárias de Leonardo da Vinci, neste blogue dedicado à literatura, às artes e
à cultura em geral, recordei-me de uma obra lançada há exatos vinte anos sobre as
invocações gastronômicas de um dos maiores escritores da língua portuguesa: Eça
de Queiroz. Um romancista que, por suas inúmeras citações alimentares,
considerava as refeições não apenas como pretexto para reuniões familiares e
sociais, mas como recursos para compor uma atmosfera, fazer evoluir a trama, retratar
uma época e expor a sua posição em face da realidade, em particular a
portuguesa. Um literato que, em Cozinha
Arqueológica, já nos idos de 1893, foi capaz de estabelecer um veredito
definitivo ao encontro do que pensa qualquer hedonista bem resolvido: “Diz-me o
que comes, dir-te-ei o que és”. E que antecipou, desde logo, o papel essencial que
a gastronomia desempenharia nos seus livros, nos quais a caracterização dos
personagens tinha como elementos fundamentais o vestir e o comer. Ademais, na
obra queirosiana, jantares, almoços e cafés servem à representação critica de
vários aspectos, como hábitos, sexualidade e moral, da sociedade lusa do século
XIX.
Cedidos em 1995 os
direitos autorais da obra à fundação portuguesa que leva o nome do escritor (e
que em 2015 completou 25 anos de existência), os gestores resolveram reeditá-la
com uma rouparem renovada que conta, entre outras muito bem apresentadas, com várias
fotos das comidas e doces que permearam os seus livros célebres e que
inspiraram a autora, a conhecida gastrônoma alentejana Maria de Lourdes
Modesto. Numa nova perspectiva, coube a ela a identificação e a divulgação de
várias receitas, permitindo assim perpetuar na memória os muitos episódios e
cenas em que personagens dos romances queirosianos se refestelam com toda sorte
de iguarias, degustam os melhores vinhos e raspam os pratos com avidez.
Trata-se, naturalmente,
de Comer e Beber com Eça de Queiroz.
Uma preciosidade literária distribuída em mais de cem páginas que por certo
dariam ao consagrado romancista um grande prazer de ver, ler e experimentar,
considerado que era como um amante da boa mesa e para quem a gula (apesar de
incluída entre os sete pecados capitais) é uma das melhores virtudes da
existência humana. Lamentavelmente, sua saúde precária não lhe permitia abusar
das delícias a que se referia com entusiasmo. Nas cartas à esposa, várias vezes
se queixou de males do estômago e do intestino provocados por comidas pesadas.
Escrever, portanto, sobre aqueles quitutes sem poder devorá-los como gostaria,
deveria ser para ele um grande tormento.
Embora não fosse um
cozinheiro de fato, reconhece-se que Eça deixou uma marca indelével na cozinha
portuguesa. Residindo fora de Portugal como diplomata, em Cuba, Inglaterra e
França, ressentia-se da falta de contato com o país de origem e sentia saudade
das iguarias da terrinha. Por isso, talvez, a culinária seja tratada com reverência
por seus personagens. Para degustar um prato de bacalhau com pimentões e
grão-de-bico, por exemplo, Fradique Mendes tira a sobrecasaca, ataca o pitéu
sem igual e adverte os amigos que puxam assunto: “Nada de ideias! Deixem-me
saborear esta bacalhoada em perfeita inocência de espírito, como no tempo do
senhor Dom João V, antes da democracia e da crítica”.
Mas não é apenas
portuguesa a influência detectada nos seus relatos. Morando em Paris, Eça não
pôde permanecer isento aos imperativos da realidade cultural nem se furtar a registrar
em seus escritos várias delicias de origem francesa, como o “Jambon aux
épinards” e o “Barão de Pauillac”, este procedente de uma região do mesmo nome,
famosa pela carne de cordeiros ou borregos, como se diz em Portugal.
A partir da nova
edição, portanto, o leitor fiel que sonhava ser um dos convivas daqueles
banquetes icônicos pode novamente saciar seu desejo, mergulhando nas
particularidades dos “Ovos queimados e com chouriço”, dos "Folhados do Cocó"da “Empadas de Rosas ",dos "Bolinhos de Bacalhau", da “Sopa seca de pão com presunto e legumes”, do "Coelho Guisado à moda da Porcalhota" do “Consommé frio com trufas”, da “Cabidela”,
da “Galinha afogada em arroz” (Canja) ou do famoso “Arroz de favas”, todos
descritos no livro com detalhes de preparação esmerada. Estes dois últimos,
aliás, foram os pratos servidos às pressas ao próprio Eça quando pela primeira
vez chegou à Pensão Borges, na cidade de Tormes, atual Vila Nova, em plena
Região do Douro, para escrever A Cidade e
as Serras. E tornaram-se, como se recorda, alguns dos pratos celebrados pelo
abilolado personagem Jacinto, com grande destaque.
Por isso, cada uma das receitas
do livro de Maria de Lourdes Modesto, uma das cozinheiras mais famosas de
Portugal, aparece acompanhada por citações escolhidas pela professora da USP, Beatriz
Berrini, grande especialista queirosiana, que oferecem o contexto literário em
perfeita coordenação visual e estética, além das sugestões de vinho para a
completa harmonização (com preferência pelo Verde, é claro). Para atiçar ainda
mais o apetite dos leitores, as fotografias dos serviços elaborados são
ambientadas como se estivessem numa mesa do século antepassado. Verdadeira
síntese, pois, entre culinária e literatura
.
Para o sucesso da obra,
consagrado após vinte anos da primeira edição no Brasil, a pesquisa foi árdua. Obrigou
as autoras a consultar vários manuais culinários da época de Eça de Queiroz
(1845-1900) e recorrer a tratados bem mais antigos, como o Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria, do século XVI, para o
preparo das “Almôndegas indigestas e divinas do tempo das Descobertas”,
imortalizadas pela descrição do já citado personagem-título em Fradique Mendes: Memórias e Notas. Além
disso, os produtores do livro esmeraram-se em ambientar as imagens como
corresponde, recorrendo a antiquários e museus portugueses na busca de
elementos decorativos de época e utilizando-se de locais que o próprio escritor
frequentava, como o Restaurante Tavares e o Grêmio Literário, em Lisboa.
E não se fica apenas na
imaginação, como outrora. Todos os pratos podem ser hoje consumidos,
iguaizinhos, no já famoso Restaurante de Tormes, localizado na Freguesia de
Santa Cruz do Douro, Conselho de Baião, graças à saudável parceria criada entre
o estabelecimento (remanescente da antiga Pensão Borges) e a Fundação Eça de
Queiroz.
Sendo filho de
brasileiro, é curioso notar que Eça nunca veio ao Brasil. No início de sua
carreira diplomática, até que tentou obter um posto consular na Bahia, mas foi
mandado para Havana e aqui nunca esteve apesar dos laços estreitos que
preservou com a nossa cultura e vários de nossos literatos ao longo da vida.
A sua primeira ligação
ao Brasil foi, efetivamente, a sua ama de leite, Ana Joaquina Leal de Barros,
pernambucana. Mas, na realidade, os laços com o nosso país já se podem
encontrar antes do seu nascimento. O seu avô, Dr. José Joaquim de Queiroz e
Almeida, refugiara-se no Rio de Janeiro, na época das lutas liberais. Na cidade
maravilhosa nasceu José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, pai do
romancista, em 1820, dois anos antes da Independência brasileira. Regressada a
Portugal, a família Queiroz levou um casal de criados africanos, Rosa e Mateus.
Foram estes que, mais tarde, acarinharam o pequeno José Maria Eça de Queiroz,
lhe cantaram cantigas de embalar e contaram histórias misteriosas do Sertão.
Considerando o apreço
dos brasileiros e africanos pela comida e sua preparação, talvez daí, da
convivência íntima na própria casa, tenha surgido também esse apelo de Eça aos
bons pratos, todos muito bem elaborados e descritos na sua obra com riqueza de
detalhes, que permitem a seus leitores dar curso à imaginação e aguçar o
paladar. Resgatando-lhe a memória, Comer
e Beber com Eça de Queiroz é, pois, muito mais do que um caderno de
receitas. É um livro de arte de dar água na boca, literal e literariamente. Vale
a pena conferir.
Silvio Assumpção
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