ITUZAINGÓ: CURIOSIDADES SOBRE UM HINO BRASILEIRO QUE FOI PARAR NA ARGENTINA
Esta
semana, com a posse de um novo presidente, nossos queridos hermanos argentinos
iniciam nova etapa na sua trajetória de consolidação democrática. Torcemos por
isso. Trata-se, sem dúvida, de um país maravilhoso, por vezes contraditório na
sua essência, que manteve com o Brasil uma relação de altos e baixos ao longo
de séculos de história comum, mas pelo qual eu e minha amiga Karla Júlia
nutrimos uma paixão declarada, alimentada por vários sentimentos que vão do
afeto espontâneo à admiração mais descarada.
Talvez pelas circunstâncias
adversas dos últimos tempos, o melhor de tudo é que os hermanos estão assumindo
a autocrítica e aprendendo a reconhecer suas qualidades e defeitos, adquirindo
até a salutar capacidade de galhofar e de brincar com seus próprios
anacronismos. Comprovam-no uma série de comentários de historiadores argentinos
nessas vésperas de renovação presidencial, repassando os processos e eventos ocorridos no passado. Segundo eles, daqui a
mil anos, quando se escreva e se analise a história contemporânea, a Argentina
será certamente lembrada por inúmeras curiosidades, além de Gardel e do tango.
Recordar-se-á, por exemplo, que foi o primeiro país sul-americano em que, sob
regime não monárquico, duas esposas sucederam seus maridos no comando político
do país: María Estela Martínez de Perón, a Isabelita,
em 1974 e Cristina Elisabet Fernández de Kirchner, em 2007. Ademais, se
constatará que a mulher mais famosa do país e a mais poderosa de seu tempo,
Evita de Perón, nunca chegou à suprema magistratura da Nação. Muitos dados
interessantes como estes, portanto, serão lembrados depois que os evos se
dobrarem invariavelmente uns sobre os outros.
Mas existe outro fato
original, conhecido apenas pelos historiadores, que merece ser destacado nesses
tempos de renovação e de salutar alternância governamental. Além da faixa e do
bastão de comando (executado há décadas pelo célebre prateiro portenho Juan
Carlos Pallarols), símbolos cerimoniais que o chefe de Estado argentino recebe
ao assumir o cargo, sabe-se que lhe está reservado um terceiro atributo
adicional conhecido como estandarte ou insígnia pessoal de presidente da Nação,
que somente é hasteado nos lugares onde ele ou ela se encontre, ainda que
temporariamente. No caso argentino, existe ainda um quarto fator identificador
da chegada do supremo mandatário em atos oficiais e cerimônias publicas.
Trata-se de peça musical, a bem dizer uma marcha, que serve para anunciar a
presença daquele ou daquela que o povo escolheu como seu representante máximo
perante o mundo de acordo com as regras do Direito Constitucional e
Internacional.
No Brasil, à exceção do tal
bastão, essas tradições também existem. Aqui, a melodia instrumental do nosso
primeiro mandatário é chamada ‘Toque e Exórdio de Presidente da República’,
caracterizada pela introdução do Hino Nacional mais as estrofes finais. Na
República Argentina, o toque militar que identifica pessoalmente o presidente é
a chamada ‘Marcha de Ituzaingó’, utilizada pela primeira vez para esse efeito
em 25 de maio de 1827, três meses depois de finalizada a batalha com o mesmo
nome.
Mas o que teria isso de
interessante, a ponto de merecer comentários pormenorizados? Nada, a não ser
pelo fato de esta peça musical centenária, executada até hoje na Argentina para
homenagear o seu presidente, ter sido criada por Sua Majestade o Imperador Dom
Pedro I. Não deixa de ser irônico. E o Uruguai, onde entra nessa história? De
forma ainda mais singular. Como as versões e os fatos diferem segundo os
protagonistas do que ocorreu há longínquos 190 anos, vamos a eles.
Em meados de
1825, com o apoio logístico e militar das Províncias Unidas do Rio da Prata
(atual Argentina), Juan Antonio Lavalleja chefiou a epopeia dos célebres Trinta
e Três Orientais que se tornaram os precursores da independência uruguaia. No
ano seguinte, sitiaram Montevidéu e obtiveram o suporte político pretendido
junto à administração de Buenos Aires, rebelando-se contra o domínio do Império
do Brasil sobre a Província Cisplatina (atual Uruguai), o que levou Dom Pedro I
à declaração de guerra, em pleno verão de 1826.
De início,
antes daquele ato extremo, assevera-se que o monarca deu pouca atenção à
revolta, em face de outras questões urgentes que se registravam em Províncias
consideradas mais importantes ou estratégicas para a consolidação do processo
político iniciado com o Grito do Ipiranga, tais como no Maranhão, Pará,
Pernambuco e Bahia. Com os recursos humanos, materiais e financeiros
comprometidos nas lutas de pacificação, a bem dizer, adiou as preocupações
imediatas em relação ao levante na mais meridional das Províncias do Império.
A partir de
dezembro de 1826, como a revolta libertária adquiriu apoio popular expressivo
dos uruguaios e seus vizinhos no Rio da Prata, o temperamento forte e
centralizador de Sua Majestade foi determinante para a decisão de sufocá-la
militarmente e de comandar, ele próprio, a campanha restauradora. Surpreendido
com a morte de Dona Leopoldina, porém, retorna às pressas ao Rio de Janeiro e
nomeia como comandante do exército imperial o Marquês de Barbacena. Além de
artilharia pesada, cavalaria e das tropas regulares, convocadas de emergência e
agregadas de mercenários estrangeiros, o nobre Felisberto Caldeira Brant rumou
ao sul do Continente levando consigo, curiosamente, uma singular partitura
musical composta pelo Imperador, cuja execução triunfal deveria marcar a
vitória, considerada por ele como favas contadas, sobre os rebelados
cisplatinos.
Como se
sabe, as Províncias Unidas do Rio da Prata, às quais a Cisplatina pretendia
agregar-se politicamente, padeciam inúmeros conflitos internos. Às motivações
comerciais da Grã Bretanha não interessava também que as duas bandas separadas
pelo ‘Mar Dulce’ se associassem e o controle do estuário estivesse sob uma
mesma jurisdição. A única motivação que as unia era o sentimento de profunda
antipatia pelo Império do Brasil e sua tendência expansionista, que
consideravam uma ameaça à estabilidade da região. Reproduzia-se, portanto, na
rivalidade entre os mandatários dos confins da América do Sul, em pleno século
XIX, a eterna disputa entre Portugal e Espanha. E o conflito tornou-se
inevitável.
A batalha
campal se iniciou de fevereiro de 1827, depois da investida rebelde contra pequenas vilas e cidades na atual
fronteira comum, até Rosário do Sul. Ignorando
o estratagema tático de Lavalleja e julgando-os em retirada, Barbacena
perseguiu os sete mil revoltosos e preparou-se para enfrentá-los no dia 20, no
comando de pouco mais de cinco mil soldados brasileiros e estrangeiros, em
pleno centro-oeste do Estado do Rio
Grande do Sul.
Entre
estratégias mal sucedidas, tropas exauridas, episódios intrigantes e
controvérsias sobre movimentos equivocados de ambos os lados, o certo é que as
forças imperiais suportaram expressivo combate terrestre e recuaram, não
obstante mantendo, temporariamente, o bloqueio naval sobre Montevidéu e Colônia
do Sacramento. Depois do enfrentamento bélico principal, seguiram-se poucas
ações militares até que se evidenciasse o óbvio, além do que já comprovariam os
1.200 mortos, 400 feridos e 800 prisioneiros brasileiros, em contraposição aos
147 abatidos e 256 feridos no lado opositor. A débâcle imperial em terra e no
mar contribuiu para a assinatura, em 1828, da Convenção Preliminar de Paz, que
culminou com o reconhecimento do Uruguai como um Estado livre e soberano,
desfecho sobre o qual os ingleses tiveram influencia decisiva.
Agora a
explicação para o título deste já longo texto. Entre as peças de artilharia,
bandeiras e munições abandonadas pelo Exército Imperial na retaguarda
encontrava-se nada menos que um cofre. Dentro dele estava a tal partitura
levada por Barbacena, logo confiscada pelo exército aliado republicano.
Apoderando-se do curioso material e dando-se conta da sua finalidade originária
(Marcha da Vitória), os argentinos a batizaram de ‘Marcha de Ituzaingó’, em homenagem
ao cenário simbólico da batalha, cuja denominação oficial no Brasil sempre foi
a de ‘Passo do Rosário’.
E os
hermanos foram além: anunciaram com alarde regional que o próprio Dom Pedro
criara a obra, conservando-a assim como um verdadeiro troféu de guerra. A
partir de então, aquela melodia marcial com três minutos e 57 segundos de
acordes vibrantes passou a ser executada nos quartéis argentinos com
regularidade histórica, até se tornar, mais tarde, um símbolo dos rapapés
oficiais ao presidente do país.
Quem ouve
peça e conhece, por exemplo, o nosso ‘Hino da Independência’, este da autoria
comprovada do primeiro Imperador do Brasil, logo lhe identifica a marca pessoal
e o significado triunfal que imprimia as suas composições, como aficionado.
Como a partitura original da ‘Marcha de Ituzaingó’ não levava assinatura, há
quem duvide se a obra foi mesmo composta por ele ou criada por encomenda. Mas
isso pouco importa, mais vale nesse caso a versão do que os fatos em si. E
estes o demonstram como estão de tal maneira entranhados os destinos de Brasil
e Argentina, a ponto de, ainda hoje, uma criação monárquica perpetuar-se como
símbolo de poder com tanto significado num regime republicano. Isto é muito bom
e merece ser recordado por todos os brasileiros, desejosos de que a lógica da
amizade, do respeito mútuo e da cooperação possa substituir para sempre a da
confrontação entre os dois países. Quem sabe até no futebol. É o que esperamos
e merecemos.
Silvio Assumpção
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