sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

ITUZAINGÓ: CURIOSIDADES SOBRE UM HINO BRASILEIRO QUE FOI PARAR NA ARGENTINA

 Esta semana, com a posse de um novo presidente, nossos queridos hermanos argentinos iniciam nova etapa na sua trajetória de consolidação democrática. Torcemos por isso. Trata-se, sem dúvida, de um país maravilhoso, por vezes contraditório na sua essência, que manteve com o Brasil uma relação de altos e baixos ao longo de séculos de história comum, mas pelo qual eu e minha amiga Karla Júlia nutrimos uma paixão declarada, alimentada por vários sentimentos que vão do afeto espontâneo à admiração mais descarada.

Talvez pelas circunstâncias adversas dos últimos tempos, o melhor de tudo é que os hermanos estão assumindo a autocrítica e aprendendo a reconhecer suas qualidades e defeitos, adquirindo até a salutar capacidade de galhofar e de brincar com seus próprios anacronismos. Comprovam-no uma série de comentários de historiadores argentinos nessas vésperas de renovação presidencial, repassando os processos e eventos ocorridos no passado.  Segundo eles, daqui a mil anos, quando se escreva e se analise a história contemporânea, a Argentina será certamente lembrada por inúmeras curiosidades, além de Gardel e do tango. Recordar-se-á, por exemplo, que foi o primeiro país sul-americano em que, sob regime não monárquico, duas esposas sucederam seus maridos no comando político do país: María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, em 1974 e Cristina Elisabet Fernández de Kirchner, em 2007. Ademais, se constatará que a mulher mais famosa do país e a mais poderosa de seu tempo, Evita de Perón, nunca chegou à suprema magistratura da Nação. Muitos dados interessantes como estes, portanto, serão lembrados depois que os evos se dobrarem invariavelmente uns sobre os outros.

Mas existe outro fato original, conhecido apenas pelos historiadores, que merece ser destacado nesses tempos de renovação e de salutar alternância governamental. Além da faixa e do bastão de comando (executado há décadas pelo célebre prateiro portenho Juan Carlos Pallarols), símbolos cerimoniais que o chefe de Estado argentino recebe ao assumir o cargo, sabe-se que lhe está reservado um terceiro atributo adicional conhecido como estandarte ou insígnia pessoal de presidente da Nação, que somente é hasteado nos lugares onde ele ou ela se encontre, ainda que temporariamente. No caso argentino, existe ainda um quarto fator identificador da chegada do supremo mandatário em atos oficiais e cerimônias publicas. Trata-se de peça musical, a bem dizer uma marcha, que serve para anunciar a presença daquele ou daquela que o povo escolheu como seu representante máximo perante o mundo de acordo com as regras do Direito Constitucional e Internacional.

No Brasil, à exceção do tal bastão, essas tradições também existem. Aqui, a melodia instrumental do nosso primeiro mandatário é chamada ‘Toque e Exórdio de Presidente da República’, caracterizada pela introdução do Hino Nacional mais as estrofes finais. Na República Argentina, o toque militar que identifica pessoalmente o presidente é a chamada ‘Marcha de Ituzaingó’, utilizada pela primeira vez para esse efeito em 25 de maio de 1827, três meses depois de finalizada a batalha com o mesmo nome.

Mas o que teria isso de interessante, a ponto de merecer comentários pormenorizados? Nada, a não ser pelo fato de esta peça musical centenária, executada até hoje na Argentina para homenagear o seu presidente, ter sido criada por Sua Majestade o Imperador Dom Pedro I. Não deixa de ser irônico. E o Uruguai, onde entra nessa história? De forma ainda mais singular. Como as versões e os fatos diferem segundo os protagonistas do que ocorreu há longínquos 190 anos, vamos a eles.

Partitura Ituzaingó

Em meados de 1825, com o apoio logístico e militar das Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argentina), Juan Antonio Lavalleja chefiou a epopeia dos célebres Trinta e Três Orientais que se tornaram os precursores da independência uruguaia. No ano seguinte, sitiaram Montevidéu e obtiveram o suporte político pretendido junto à administração de Buenos Aires, rebelando-se contra o domínio do Império do Brasil sobre a Província Cisplatina (atual Uruguai), o que levou Dom Pedro I à declaração de guerra, em pleno verão de 1826.

De início, antes daquele ato extremo, assevera-se que o monarca deu pouca atenção à revolta, em face de outras questões urgentes que se registravam em Províncias consideradas mais importantes ou estratégicas para a consolidação do processo político iniciado com o Grito do Ipiranga, tais como no Maranhão, Pará, Pernambuco e Bahia. Com os recursos humanos, materiais e financeiros comprometidos nas lutas de pacificação, a bem dizer, adiou as preocupações imediatas em relação ao levante na mais meridional das Províncias do Império.

A partir de dezembro de 1826, como a revolta libertária adquiriu apoio popular expressivo dos uruguaios e seus vizinhos no Rio da Prata, o temperamento forte e centralizador de Sua Majestade foi determinante para a decisão de sufocá-la militarmente e de comandar, ele próprio, a campanha restauradora. Surpreendido com a morte de Dona Leopoldina, porém, retorna às pressas ao Rio de Janeiro e nomeia como comandante do exército imperial o Marquês de Barbacena. Além de artilharia pesada, cavalaria e das tropas regulares, convocadas de emergência e agregadas de mercenários estrangeiros, o nobre Felisberto Caldeira Brant rumou ao sul do Continente levando consigo, curiosamente, uma singular partitura musical composta pelo Imperador, cuja execução triunfal deveria marcar a vitória, considerada por ele como favas contadas, sobre os rebelados cisplatinos.
Como se sabe, as Províncias Unidas do Rio da Prata, às quais a Cisplatina pretendia agregar-se politicamente, padeciam inúmeros conflitos internos. Às motivações comerciais da Grã Bretanha não interessava também que as duas bandas separadas pelo ‘Mar Dulce’ se associassem e o controle do estuário estivesse sob uma mesma jurisdição. A única motivação que as unia era o sentimento de profunda antipatia pelo Império do Brasil e sua tendência expansionista, que consideravam uma ameaça à estabilidade da região. Reproduzia-se, portanto, na rivalidade entre os mandatários dos confins da América do Sul, em pleno século XIX, a eterna disputa entre Portugal e Espanha. E o conflito tornou-se inevitável.

A batalha campal se iniciou de fevereiro de 1827, depois da investida rebelde contra pequenas vilas e cidades na atual fronteira comum, até Rosário do Sul. Ignorando o estratagema tático de Lavalleja e julgando-os em retirada, Barbacena perseguiu os sete mil revoltosos e preparou-se para enfrentá-los no dia 20, no comando de pouco mais de cinco mil soldados brasileiros e estrangeiros, em pleno centro-oeste do Estado do Rio Grande do Sul.

Entre estratégias mal sucedidas, tropas exauridas, episódios intrigantes e controvérsias sobre movimentos equivocados de ambos os lados, o certo é que as forças imperiais suportaram expressivo combate terrestre e recuaram, não obstante mantendo, temporariamente, o bloqueio naval sobre Montevidéu e Colônia do Sacramento. Depois do enfrentamento bélico principal, seguiram-se poucas ações militares até que se evidenciasse o óbvio, além do que já comprovariam os 1.200 mortos, 400 feridos e 800 prisioneiros brasileiros, em contraposição aos 147 abatidos e 256 feridos no lado opositor. A débâcle imperial em terra e no mar contribuiu para a assinatura, em 1828, da Convenção Preliminar de Paz, que culminou com o reconhecimento do Uruguai como um Estado livre e soberano, desfecho sobre o qual os ingleses tiveram influencia decisiva.

Agora a explicação para o título deste já longo texto. Entre as peças de artilharia, bandeiras e munições abandonadas pelo Exército Imperial na retaguarda encontrava-se nada menos que um cofre. Dentro dele estava a tal partitura levada por Barbacena, logo confiscada pelo exército aliado republicano. Apoderando-se do curioso material e dando-se conta da sua finalidade originária (Marcha da Vitória), os argentinos a batizaram de ‘Marcha de Ituzaingó’, em homenagem ao cenário simbólico da batalha, cuja denominação oficial no Brasil sempre foi a de ‘Passo do Rosário’.
E os hermanos foram além: anunciaram com alarde regional que o próprio Dom Pedro criara a obra, conservando-a assim como um verdadeiro troféu de guerra. A partir de então, aquela melodia marcial com três minutos e 57 segundos de acordes vibrantes passou a ser executada nos quartéis argentinos com regularidade histórica, até se tornar, mais tarde, um símbolo dos rapapés oficiais ao presidente do país.


Quem ouve peça e conhece, por exemplo, o nosso ‘Hino da Independência’, este da autoria comprovada do primeiro Imperador do Brasil, logo lhe identifica a marca pessoal e o significado triunfal que imprimia as suas composições, como aficionado. Como a partitura original da ‘Marcha de Ituzaingó’ não levava assinatura, há quem duvide se a obra foi mesmo composta por ele ou criada por encomenda. Mas isso pouco importa, mais vale nesse caso a versão do que os fatos em si. E estes o demonstram como estão de tal maneira entranhados os destinos de Brasil e Argentina, a ponto de, ainda hoje, uma criação monárquica perpetuar-se como símbolo de poder com tanto significado num regime republicano. Isto é muito bom e merece ser recordado por todos os brasileiros, desejosos de que a lógica da amizade, do respeito mútuo e da cooperação possa substituir para sempre a da confrontação entre os dois países. Quem sabe até no futebol. É o que esperamos e merecemos.



  

        

                           Silvio Assumpção

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