quarta-feira, 24 de junho de 2015

Gardel -Mitologias de um gênio Bastardo - 1° parte


Mitologias de um gênio bastardo

1° Parte

por Silvio Assumpção

       



Com o título acima, o jovem professor e escritor Valentín Trujillo lançou recentemente, nos meios de imprensa uruguaios, novas luzes sobre a vida do maior expoente do chamado tango-canción, cuja memória é majoritariamente associada ao típico ambiente porteño. Um homem nascido presumidamente na França, que tomou a Argentina como país de adoção, imortalizando-a com o insuperável "Mi Buenos Aires querido ".


Referindo-se à grande Voz do Tango e ao ano de 2015, o também jornalista Trujillo assinala com propriedade que as datas cíclicas tendem a se parecer, mas às vezes o almanaque se alinha e forma cifras redondas, tão simbólicas quanto significativas.


De fato, o mês de junho é especialmente caro para os amantes do tango. No ano em curso esse interesse se manifesta de maneira imperiosa, uma vez que se cultua de modo muito particular, na Festa de São João, a memória de Carlos Gardel, esse personagem único que faleceu às 15h05min do dia 24 de junho em um inusitado acidente aéreo, há exatos oitenta anos, no Aeropuerto Olaya Herrera da cidade de Medellín, a segunda mais importante da Colômbia. Com o Zorzal Criollo morreram prematuramente em 1935 outras dezessete pessoas, entre elas grandes expoentes do tango, como o compositor e parceiro Alfredo Le Pera e os guitarristas Guillermo Barbieri e Ángel Domingo Riverol.


A tragédia materializou-se pelo choque em terra da aeronave em que viajava Gardel com outra que estava na cabeceira da pista, esquentando motores para decolar. Embora as características tenham conferido à sua morte caráter legendário, as causas reais do acidente nunca foram satisfatoriamente esclarecidas, dando curso a uma série de especulações, como a de que Gardel perdera o controle e houvera disparado ao piloto do Ford F-31 da empresa SACO, momentos depois de ter sido acusado por ele de ser homossexual. Falou-se também de uma bala perdida, disparada ao ensejo de uma riña entre Gardel e Le Pera. Atingido o vidro frontal do avião e impedida a decolagem, o piloto do F-31, ao constatar o choque iminente com a outra aeronave, um Ford F-11 de SCADTA, teria disparado contra a própria cabeça para evitar morrer calcinado, perdendo assim o controle da situação. Nada, porém, pôde ser comprovado, em razão do falecimento de quase todos os ocupantes de ambos os aparelhos. Junto ao corpo do cantor, queimadas nas bordas, se encontraram as partituras originais de Cuesta 


Curiosamente, no ano atual se comemora também o centenário da primeira viagem de Gardel ao exterior e o seu début artístico no Uruguai, onde se apresentou em 1915 ao lado do compositor e cantor oriental José ‘Pepe' Razzano. Este formou com o Morochoum dueto que se fez célebre entre 1911 e 1925, ano em que Razzano, por problemas vocais, abandonou o canto. Desfeita a dupla, Razzano continuou a ser o representante artístico de Gardel na Banda Oriental do Rio da Prata até 1933. Esteve ao lado dele, portanto, na estreia dos cenários boêmios de Montevidéu, apresentando-se ambos, como “artistas uruguaios”, provavelmente no sempre reconhecido bar Fun Fun, que foi fundado em 1895 e está até hoje em atividade.


Por tudo isso, renova-se nesta época, tanto na Argentina quanto particularmente em Tacuarembó, no Uruguai, a tradicional Semana Gardeliana, que contribui todos os anos para imortalizar a memória do grande artista. Precisamente na região interiorana que os uruguaios consideram ser o verdadeiro lugar de nascimento de Carlitos, para orgulho nacional.


Essa disputa antiga e sempre controversa entre os historiadores, que na verdade nasceu sob a inspiração de um esboço de tango quase trinta anos depois do acidente aéreo de 1935, recebeu o contributo recente da investigadora Martina Iñiguez, uma das principais especialistas em Gardelogia. Curiosamente, trata-se de uma argentina, contrariando de forma categórica os compatriotas aguerridos, que sempre insistiram na nacionalidade francesa da Voz del Tango e se recusam há anos a autorizar a exumação de seu corpo para os exames de DNA que supostamente comprovariam os vínculos inalienáveis com o Uruguai.


Entre outros méritos, a escritora e letrista argentina, que se dedica ao tema desde 1960 e é autora do ensaio 'Carlos Gardel': sua biografía oculta, entre 1846 y 1912'”,conseguiu descobrir e identificar uma fotografia do menino Carlos em uma escola da antiga calle Médanos, atual Barrios Amorín, no Barrio Sur de Montevidéu.


Esse achado tem um especial significado. Iñiguez, como muitos gardeólogos uruguaios, é defensora da tese que aponta a existência de dois meninos vinculados à vida da bailarina francesa Berthe Gardés: por um lado, Carlos, filho bastardo do fazendeiro Carlos Escayola, e Charles Romuald Gardés, filho legítimo da própria Berthe. Este último teria sido concebido no Uruguai quando ela trabalhava em um cabaré de Minas de Corrales, e terminou por nascer em Toulouse, no regresso da mãe, ainda grávida, ao seu país de origem. Por essa razão é que existe uma certidão de nascimento que documenta a Charles Gardés como nascido na França, em 11 de dezembro de 1890, no Hospital de La Grave, filho de pai desconhecido,sendo este o principal argumento daqueles que sustentam a sua nacionalidade francesa.

Ao destapar novamente a “caixa de Pandora”, o que Martina Iñiguez tenta demonstrar, de forma taxativa, é que o uruguaio Carlos Gardel e o francês Charles Gardés foram duas pessoas diferentes. Fruto de uma relação ilegal entre María Lelia Oliva e Carlos Escayola, chefe militar y político de Tacuarembó, que não reconheceu a paternidade da criança, o primeiro acabou supostamente entregue aos cuidados de Berthe Gardés como enteado.


Pelo que parece, a mulher havia estado em um primeiro momento no Uruguai onde recebeu para criar, por imposição do velho coronel, o menino Carlos, e em seguida viajou de novo a Toulouse onde deu a luz a Charles Romuald Gardés, seu único filho biológico. Depois emigraram juntos para a Argentina e estabeleceram-se no país vizinho. A chamada “versão francesa”, portanto, situa Berthe Gardés como genitora biológica de Gardel, enquanto a “versão uruguaia” a considera apenas sua mãe adotiva. Não se sabe, inclusive, que fim levou o menino Charles, se morreu ou se voltou oportunamente à França para cumprir as obrigações militares de todo francês.


O trabalho de Iñiguez, que será apresentado em Montevidéu esta semana e logo lançado em Tacuarembó, promete introduzir ao caso mais uma forte polêmica, considerado que é pelos especialistas como uma investigação muito potente e documentada, que resgata elementos fidedignos e probatórios da “teoria uruguaia”.


Reforçaria esse entendimento o livro 'El Padre de Gardel', surgido em 2012, da autoria dos pesquisadores franceses Georges Galopa y Monique Ruffie, associados ao argentino Juan Carlos Estebán. A obra literária foi transformada em filme pelo cineasta uruguaio Ricardo Casas em 2014, tendo ele realizado uma minuciosa investigação sobre a vida do coronel Escayola e de sua família de origem catalã, com entrevistas e imagens realizadas na Espanha. No documentário, Casas ressalta essencialmente que a carreira de Carlos Gardel é pública e notória; porém, muito mais que sua voz inconfundível, o que sempre intrigou a todos foi sua origem.


Em 'El Padre de Gardel' busca-se, portanto, por meio de depoimentos e registros históricos, determinar não apenas sua nacionalidade, mas a sua verdadeira família. Uma oportunidade de romper o silêncio profundo sobre esse eterno mistério e, sobretudo, sobre as idiossincrasias culturais da sociedade rio platense que insiste em querer ocultar seu passado, suas raízes caudillescas com rasgos de hipocrisia. Uma sociedade que parece não se importar em deixar, sem a identidade devida, um homem considerado bastardo, filho de um escândalo, cujo cerne estava no comportamento amoral de um controvertido chefe político, frequentador de lupanares, ao qual se atribuem 50 filhos naturais, além dos 14 que teve com as três irmãs Oliva, esposas ante a lei e a Igreja.


Com narrativa considerada linear e até sem inovações, o filme torna-se mais interessante a partir do momento em que Gardel aparece na tela, constatando afinal, por meio de gravações e documentos vários, sua ligação com o fazendeiro Carlos Escayola que mandava e desmandava na pequena cidade uruguaia de Tacuarembó em fins do Século XIX.


Pelo filme se confirma que Escayola teve três esposas e todas eram irmãs. Conhecido também por suas várias amantes, o fazendeiro teve um filho bastardo que, obviamente, acabaria por ser Carlos Gardel. Ao fim da película, como um dos entrevistados afirma, chega a ser curioso constatar que Escayola não queria que ninguém tomasse conhecimento daquele filho ilegítimo, entre os vários, o qual acabou por se tornar uma das figuras mais famosas e emblemáticas das artes cênicas mundiais.


E tais são as afinidades históricas que, em 2015, justamente a cidade espanhola de Sabadell, a poucos quilômetros ao norte de Barcelona, de onde saiu Escayola para o Uruguai, será um dos muitos lugares do mundo que neste dia 24 de junho recordarão o grande artista.

Mas os "uruguaistas" se defendem com outros documentos. A principal prova seria uma manifestação do próprio Gardel, que em 1920 confirmou oficialmente que nascera na localidade de Valle Edén, Tacuarembó, sendo 'hijo' de Carlos Escayola y de María Lelia Oliva, ambos 'fallecidos', segundo suas declarações ao Registro Civil para a obtenção de uma cédula de identidade uruguaia.




Carlos Arezo, atual Diretor Geral de Cultura da Intendência de Tacuarembó, organizador da Semana Gardeliana no Uruguai e compilador do recente livro 'Gardel es uruguayo', constituído este de vários artigos sobre a autenticidade do nascimento oriental do artista, considera inclusive que aquele documento é absolutamente fundamental, porque ali Gardel regularizou sua situação pessoal, já que era há vários anos um “indocumentado". Ademais, segundo Arezo, várias vezes Gardel manifestou à imprensa da época que era uruguaio. Essas referências resultaram, sobretudo, das pesquisas pioneiras realizadas pelo investigador uruguaio Erasmo Silva Cabrera, no início da década de 1960, em cujo trabalho de 1967, 'Carlos Gardel: el gran desconocido', se inspira agora a argentina Martina Iñiguez.


Essa nova biografia oculta do cantor, portanto, promete selar “a toda luz” perante o mundo a sua verdadeira origem uruguaia. Segue no bojo de várias obras literárias que, ao longo dos últimos anos, enfocaram o assunto depois da morte de Berthe Gardés em 1943. Entre elas, destacam-se a de Federico Silva, intitulada “Informe sobre Gardel” (1971), a de Blas Matamoro, denominada 'Carlos Gardel' (1971), a de Eduardo Paysée González com 'Gardel: artista, mito y hombre'(1995), a de María Selva Ortiz, denominada 'El Silencio de Tacuarembó' (1995), e a do colombiano Horacio Vázquez-Rial em 2001, intitulada 'Las dos muertes de Gardel'.


Mas os argentinos que defendem a “tese francesa” acusam aquele documento de 1920 de apócrifo e conjuntural, com ares de falsificação, já que Gardel, como suposto cidadão francês, era passível de ser recrutado para lutar nas duas guerras que se sucederam na Europa. Pressionado pela situação, teria afirmado ser uruguaio, embora mais tarde, em 7 de março de 1923,  tenha se naturalizado argentino. 

Segundo ainda os estudiosos porteños, a genitora de Charles Romuald Gardés, que seria o nome de batismo de Gardel, foi expulsa de casa pela família francesa por ser mãe solteira e fugiu com o filho para a Argentina, quando ele contava apenas dois anos e três meses. Tempos depois, na época da Grande Guerra, o cantor, como cidadão francês, deveria se apresentar ao consulado do país europeu em Buenos Aires para ser enviado ao campo de batalha. Sem nenhuma identificação com a França, Gardel ignorou a convocação e ficou em situação irregular, o que se tornou um problema quando sua fama alcançoustatus internacional e ele passou a receber convites para se apresentar no Velho Mundo.



Em 1920, o cantor teria resolvido o contratempo ao conseguir uma certidão de nascimento uruguaia, onde registrou o seu nome artístico: Carlos Gardel. Para corroborar essa teoria, os pesquisadores se valem de outro documento, o testamento feito por Gardel em 1933, divulgado depois de sua morte, onde Toulouse é citada como a cidade natal do cantor.


Ainda sobre o pai de Gardel, outro grande mistério que cerca a vida do cantor, a “versão francesa” aponta indícios sobre a sua real identidade. Seu nome seria Paul Jean Lassere, cidadão francês, que teria se casado seis anos depois da partida do filho ilegítimo para a Argentina e seria pai de duas outras filhas. De acordo com as investigações, dois anos depois do nascimento de Gardel, Lassere foi preso em Paris por roubo, cumprindo pena de dois anos.


Apesar de assentada entusiasticamente em 'El Padre de Gardel', na disputa pela paternidade dessa tese estiveram antes vários biógrafos, como Augusto Fernández, autor de 'Carlos Gardel por siempre' de 1973, Edmundo Eichelbaum, com seu livro 'Carlos Gardel' de 1985, e Edmundo Guibourg em 'Efígie de Carlos'. Estes e dezenas de outros títulos exaltaram o significado artístico do Francesito, como dizem era chamado o músico pelos seus contemporâneos de outrora. Aliás, um jovem que gastava muito dinheiro, se vestia como um dandy, amava as sedas e as joias, com dezenas de pares de smoking no guarda-roupa, o que nunca deixou de ser referido pelos detratores maldosos ao falar da sua sexualidade...


Pode afinal o Mago ter mentido sobre sua verdadeira nacionalidade? Isto talvez não importe. Para os uruguaios fanáticos, o fato é que Valle Edén era muito importante para Gardel, já que foi precisamente para lá, para os campos que supostamente o viram nascer, que ele retornou profundamente abatido, depois do atentado à bala que sofreu na saída do Palais de Glace de Buenos Aires, onde comemorava o próprio aniversário, no mesmo ano de 1915. Por que viria, afinal, precisamente a Tacuarembó? Que teria que fazer justamente ali?

                                           Silvio Assumpção

                                            (  Continua nos próximos dias  )

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