quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Da gastronomia, uma história sob novo prisma.

Na atualidade, para quem gosta ou se interessa por gastronomia, é bom levar em conta o que diz e escreve a espanhola Almudena Villegas Bicerril. Trata-se de uma consagrada historiadora, conferencista, diretora de escola de cozinha e autora de diversas obras sobre o assunto. Tornou-se membro da Real Academia de Gastronomia em 2009 e é também empresária, presidente da Garum Gourmet Group, uma firma de consultoria especializada na organização e desenvolvimento de serviços gastronômicos de última geração, com assessoramento integral que vai da oferta na fase de produção até a demanda do consumidor final. Um verdadeiro luxo, que encontra paralelo em muito poucos países.


Doña Almudena não é pessoa para se tentar definir com limites estritos. Sua própria figura atrai e desperta interesse, de sorriso franco, como um consagrado símbolo do bem viver. Suas papilas gustativas sabem mais de sabores, sobretudo da Ibéria ancestral, do que qualquer romano, árabe, judeu ou cristão juntos saberiam. Por suas investigações na matéria e seus manuais de cultura culinária já ganhou vários galardões nacionais e o célebre Prix Litteraire Gastronomique, concedido pela Academia Internacional que monitora o assunto.  
                                                 

Ela se define como uma romântica e sentimental, quando fala de cozinha e a associa aos tempos da infância, desde quando adquiriu olfato suficiente para traduzir prazer em conhecimento. Competência ou qualidade de especialista que Doña Almudena transplanta para os livros que escreve e para a empresa que dirige.

Para ela, comer é sempre uma festa. Isto está muito bem caracterizado no seu penúltimo livro, ‘Córdoba gastronómica: cocina, cultura, territorio’, uma luxuosa edição que situa os produtos típicos da Andaluzia numa categoria estética singular, a partir de ilustrações muito bem cuidadas e explicativas que aguçam o apetite.

E por que falo dela?  Porque sua erudição longamente adquirida e sua curiosidade intelectual permanente levaram-na a desenvolver uma tese muito curiosa, relacionada aos aportes de vários personagens históricos à gastronomia internacional. Segundo advoga, portanto, não apenas grandes cozinheiros foram os responsáveis por essa notável evolução que resultou no aperfeiçoamento de pratos e sua combinação com bebidas finas, mas também músicos, cientistas e, inclusive, políticos.

A respeito de todos eles é que versa o seu último e interessantíssimo livro: 
‘Grandes Maestros de la Historia de la Gastronomía’,  um vasto volume em que a especialista em nutrição resgata as biografias de personalidades as mais variadas que se destacaram no aprimoramento da culinária, ao longo dos séculos.

Na obra ela destaca, por exemplo, o caso de Moisés, patriarca do povo hebreu, que criou normativas pelas quais, desde aqueles tempos bíblicos até hoje no seio dos judeus, não se deve misturar carne com leite nem comer peixes com escamas. Fala também de Buda, o príncipe Sidarta Gautama, que introduziu entre seus seguidores, pela primeira vez, a alimentação vegetariana, como forma de purificação para o alcance do Nirvana.

Refere-se igualmente a Hipócrates, o grego conhecido não apenas por criar a medicina científica, mas também o conceito de saúde baseada numa alimentação saudável combinada com exercícios físicos. E destaca a curiosa contribuição pessoal do terceiro presidente norte-americano e um dos autores da Declaração de Independência, Thomas Jefferson, que introduziu vinhedos no seu país depois de viajar pela França e escreveu grande número de receitas até hoje em voga.
                                           


Almudena Villegas recorda ademais que algumas elaborações atuais com batatas (empadões com carne) são denominadas ‘a la Parmentier’, sobrenome de Antoine Agustin, considerado um verdadeiro cruzado do tubérculo no Século XVIII. Agrônomo e nutricionista francês, ele tornou-se célebre pela adaptação das ‘pommes de terre’ ao consumo humano, promovendo junto a Luis XVI a ideia de cultivá-las de forma regular nas hortas de Versailles como solução para a fome e a miséria que imperavam na França daquela época. Mesmo sem ser cozinheiro profissional, Parmentier idealizou receitas elaboradas com as humildes batatas, fazendo com que elas ascendessem a todas as mesas. Atuou também pela melhoria da qualidade do pão, por meio de escola de panificação que criou em Paris, numa época em que as ‘baguettes’ estavam longo do sucesso atual. São de sua autoria, inclusive, as cinco leis ou regras sobre a sua fabricação, aplicadas até os dias correm.
                                     

                               
                                             
De outra parte, segundo relata Doña Almudema, deve-se a Catarina de Médici, em pleno Século XVI, o gosto e a difusão da alta pastelaria, o uso dos garfos e o hábito de lavar as mãos antes de comer.

Seu interessante estudo sócio-antropológico da gastronomia resgata, obviamente, os nomes de grandes chefes que se imortalizaram nas páginas da História moderna e contemporânea, particularmente de Marie-Antoine Carême, considerado o pai da alta culinária francesa (haute cuisine), conhecido como ‘chef dos reis e rei dos chefs’, e Georges Auguste Escoffier, recordado como o grande estruturador da cozinha moderna, renovador e simplificador de métodos de preparo e ornamentação tradicionais.

Mas um dos mais notáveis cozinheiros da História, sem dúvida, foi François Vatel, o criador do ‘crème chantilly’, no Século XVII. Como se sabe, com apenas 22 anos, Vatel notabilizou-se como cozinheiro e confeiteiro no banquete de 600 convidados que o poderoso Superintendente do Tesouro da França, Nicolas Fouquet, ofereceu a Luís XVI, por ocasião da inauguração de sua residência, o castelo de ‘Vaux-le-Vicomte’. Diante da suntuosidade e do luxo com que foi recebido, o soberano considerou que Fouquet malversava fundos. Três semanas depois o demitiu do cargo e mandou prendê-lo por conspiração. Por certo, além do impacto pelo esplendor e a ostentação sem limites, o rei nunca perdoaria o sucesso logrado pelo creme de nata batida, doce e perfumado com baunilha, inventado por Vatel, rivalizando com os especialistas culinários da casa real.

                                         

 E a controversa e trágica história de François Vatel não acabou naquele episódio. Depois de viver na Inglaterra por algum tempo, para que as coisas se acalmassem, o obstinado chefe retornou à França e foi exercer o seu ofício junto ao Príncipe de Bourbon-Condé no Château de Chantilly, promovido de cozinheiro a "Mestrre dos Prazeres das Festividades" Foi lá que, afinal, batizou a sobremesa que o fez célebre. Mas, extremamente vaidoso, considera-se que ele nunca abandonou o objetivo de sobrepor-se socialmente aos mestres da cozinha do Château de Versailles. 

Em abril de 1671, estando a França prestes a enviar tropas contra a Holanda, o Grande Condé via nessa guerra uma oportunidade de recuperar as finanças e seu prestígio, comandando o exército francês. Então, para atrair o beneplácito real, encarrega Vatel da maior tarefa de sua vida: promover três dias e três noites de festividades na residência palaciana de Chantilly, para as quais foram convidados Luís XVI e três mil membros da nobreza francesa.

Desfrutaram todos, com muita pompa, todos os espetáculos organizados por Vatel. Tudo correu muito bem até que, no jantar da última noite, os organizadores perceberam que não havia assados para todas as mesas. Profundamente estressado pelo erro de cálculo, Vatel passou a noite em claro esperando os peixes que encomendara para o dia seguinte, justamente uma Sexta-Feira Santa. Ao perceber que a encomenda não seria entregue, conta a tradição que ele suicidou-se, em plena cozinha do palácio, em virtude do atraso do peixe, que ameaçava o sucesso de um dos jantares mais importantes oferecidos a Sua Majestade o Rei da França. O soberano e a corte admiraram a sua atitude, mas, simplesmente, continuaram a desfrutar do banquete...

De forma totalmente inesperada, sua morte foi tratada como uma tragédia nacional, principalmente depois que se soube que o peixe havia chegado e tudo não passava de um mal-entendido. Infelizmente já era tarde. Curioso que, nascido na atual Suíça e batizado Fritz Karl Watel, o grande chef só logrou consagrar-se com seu nome francês depois do autocídio, por influência da célebre cortesã, Madame de Sévigné.

Assim sendo, considerando a agradável experiência literária a cargo de Almudena Villegas Bicerril, muito recomendada, os interessados poderão encontrar em suas obras, além de grandes receitas, muitos aportes ao estudo da gastronomia universal e várias curiosidades acerca daqueles que, segundo ela, foram responsáveis pelo que hoje encontramos à disposição, em termos do mais puro hedonismo.  A conferir.

            Silvio Assumpção


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