Da gastronomia, uma história sob novo prisma.
Na atualidade,
para quem gosta ou se interessa por gastronomia, é bom levar em conta o que diz
e escreve a espanhola Almudena Villegas Bicerril. Trata-se de uma consagrada
historiadora, conferencista, diretora de escola de cozinha e autora de diversas
obras sobre o assunto. Tornou-se membro da Real Academia de Gastronomia em 2009
e é também empresária, presidente da Garum Gourmet Group, uma firma de
consultoria especializada na organização e desenvolvimento de serviços
gastronômicos de última geração, com assessoramento integral que vai da oferta
na fase de produção até a demanda do consumidor final. Um verdadeiro luxo, que
encontra paralelo em muito poucos países.
Doña Almudena
não é pessoa para se tentar definir com limites estritos. Sua própria figura
atrai e desperta interesse, de sorriso franco, como um consagrado símbolo do
bem viver. Suas papilas gustativas sabem mais de sabores, sobretudo da Ibéria
ancestral, do que qualquer romano, árabe, judeu ou cristão juntos saberiam. Por
suas investigações na matéria e seus manuais de cultura culinária já ganhou
vários galardões nacionais e o célebre Prix Litteraire Gastronomique, concedido
pela Academia Internacional que monitora o assunto.
Ela se define como uma romântica e sentimental, quando fala de cozinha e a associa aos tempos da infância, desde quando adquiriu olfato suficiente para traduzir prazer em conhecimento. Competência ou qualidade de especialista que Doña Almudena transplanta para os livros que escreve e para a empresa que dirige.
Para ela, comer
é sempre uma festa. Isto está muito bem caracterizado no seu penúltimo livro,
‘Córdoba gastronómica: cocina, cultura, territorio’, uma luxuosa edição que
situa os produtos típicos da Andaluzia numa categoria estética singular, a
partir de ilustrações muito bem cuidadas e explicativas que aguçam o apetite.
E por que falo
dela? Porque sua erudição longamente adquirida e sua curiosidade
intelectual permanente levaram-na a desenvolver uma tese muito curiosa,
relacionada aos aportes de vários personagens históricos à gastronomia
internacional. Segundo advoga, portanto, não apenas grandes cozinheiros foram
os responsáveis por essa notável evolução que resultou no aperfeiçoamento de
pratos e sua combinação com bebidas finas, mas também músicos, cientistas e,
inclusive, políticos.
A respeito de
todos eles é que versa o seu último e interessantíssimo livro:
‘Grandes Maestros de la Historia de la Gastronomía’, um vasto volume em que a especialista em nutrição resgata as biografias de personalidades as mais variadas que se destacaram no aprimoramento da culinária, ao longo dos séculos.
‘Grandes Maestros de la Historia de la Gastronomía’, um vasto volume em que a especialista em nutrição resgata as biografias de personalidades as mais variadas que se destacaram no aprimoramento da culinária, ao longo dos séculos.
Na obra ela
destaca, por exemplo, o caso de Moisés, patriarca do povo hebreu, que criou
normativas pelas quais, desde aqueles tempos bíblicos até hoje no seio dos
judeus, não se deve misturar carne com leite nem comer peixes com escamas. Fala
também de Buda, o príncipe Sidarta Gautama, que introduziu entre seus
seguidores, pela primeira vez, a alimentação vegetariana, como forma de
purificação para o alcance do Nirvana.
Refere-se
igualmente a Hipócrates, o grego conhecido não apenas por criar a medicina
científica, mas também o conceito de saúde baseada numa alimentação saudável
combinada com exercícios físicos. E destaca a curiosa contribuição pessoal do
terceiro presidente norte-americano e um dos autores da Declaração de
Independência, Thomas Jefferson, que introduziu vinhedos no seu país depois de
viajar pela França e escreveu grande número de receitas até hoje em voga.
Almudena
Villegas recorda ademais que algumas elaborações atuais com batatas (empadões
com carne) são denominadas ‘a la Parmentier’, sobrenome de Antoine Agustin,
considerado um verdadeiro cruzado do tubérculo no Século XVIII. Agrônomo e
nutricionista francês, ele tornou-se célebre pela adaptação das ‘pommes de
terre’ ao consumo humano, promovendo junto a Luis XVI a ideia de cultivá-las de
forma regular nas hortas de Versailles como solução para a fome e a miséria que
imperavam na França daquela época. Mesmo sem ser cozinheiro profissional,
Parmentier idealizou receitas elaboradas com as humildes batatas, fazendo com
que elas ascendessem a todas as mesas. Atuou também pela melhoria da qualidade
do pão, por meio de escola de panificação que criou em Paris, numa época em que
as ‘baguettes’ estavam longo do sucesso atual. São de sua autoria, inclusive,
as cinco leis ou regras sobre a sua fabricação, aplicadas até os dias correm.
De outra parte,
segundo relata Doña Almudema, deve-se a Catarina de Médici, em pleno Século
XVI, o gosto e a difusão da alta pastelaria, o uso dos garfos e o hábito de
lavar as mãos antes de comer.
Seu interessante
estudo sócio-antropológico da gastronomia resgata, obviamente, os nomes de
grandes chefes que se imortalizaram nas páginas da História moderna e
contemporânea, particularmente de Marie-Antoine Carême, considerado o pai da
alta culinária francesa (haute cuisine), conhecido como ‘chef dos reis e rei
dos chefs’, e Georges Auguste Escoffier, recordado como o grande estruturador
da cozinha moderna, renovador e simplificador de métodos de preparo e
ornamentação tradicionais.
Mas um dos mais
notáveis cozinheiros da História, sem dúvida, foi François Vatel, o criador do
‘crème chantilly’, no Século XVII. Como se sabe, com apenas 22 anos, Vatel
notabilizou-se como cozinheiro e confeiteiro no banquete de 600 convidados que
o poderoso Superintendente do Tesouro da França, Nicolas Fouquet, ofereceu a Luís
XVI, por ocasião da inauguração de sua residência, o castelo de
‘Vaux-le-Vicomte’. Diante da suntuosidade e do luxo com que foi recebido, o
soberano considerou que Fouquet malversava fundos. Três semanas depois o
demitiu do cargo e mandou prendê-lo por conspiração. Por certo, além do impacto
pelo esplendor e a ostentação sem limites, o rei nunca perdoaria o sucesso
logrado pelo creme de nata batida, doce e perfumado com baunilha, inventado por
Vatel, rivalizando com os especialistas culinários da casa real.
Em abril de
1671, estando a França prestes a enviar tropas contra a Holanda, o Grande Condé
via nessa guerra uma oportunidade de recuperar as finanças e seu prestígio,
comandando o exército francês. Então, para atrair o beneplácito real, encarrega
Vatel da maior tarefa de sua vida: promover três dias e três noites de
festividades na residência palaciana de Chantilly, para as quais foram
convidados Luís XVI e três mil membros da nobreza francesa.
Desfrutaram
todos, com muita pompa, todos os espetáculos organizados por Vatel. Tudo correu
muito bem até que, no jantar da última noite, os organizadores perceberam que
não havia assados para todas as mesas. Profundamente estressado pelo erro de
cálculo, Vatel passou a noite em claro esperando os peixes que encomendara para
o dia seguinte, justamente uma Sexta-Feira Santa. Ao perceber que a encomenda
não seria entregue, conta a tradição que ele suicidou-se, em plena cozinha do
palácio, em virtude do atraso do peixe, que ameaçava o sucesso de um dos
jantares mais importantes oferecidos a Sua Majestade o Rei da França. O
soberano e a corte admiraram a sua atitude, mas, simplesmente, continuaram a
desfrutar do banquete...
De forma
totalmente inesperada, sua morte foi tratada como uma tragédia nacional,
principalmente depois que se soube que o peixe havia chegado e tudo não passava
de um mal-entendido. Infelizmente já era tarde. Curioso que, nascido na atual
Suíça e batizado Fritz Karl Watel, o grande chef só logrou consagrar-se com seu
nome francês depois do autocídio, por influência da célebre cortesã, Madame de
Sévigné.
Assim sendo,
considerando a agradável experiência literária a cargo de Almudena Villegas
Bicerril, muito recomendada, os interessados poderão encontrar em suas obras,
além de grandes receitas, muitos aportes ao estudo da gastronomia universal e
várias curiosidades acerca daqueles que, segundo ela, foram responsáveis pelo
que hoje encontramos à disposição, em termos do mais puro hedonismo. A
conferir.
Silvio Assumpção
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