GARÇOM, O VINHO NÃO ESTÁ BOM!
Valho-me de aprendizagem
recente, lograda com a experiência dos sommeliers da Bodega Garzón no Uruguai,
e dos conselhos de uma edição da Revista Adega, para destacar alguns elementos
a respeito do consumo dos vinhos, sobretudo quando se percebe depois de aberta
a garrafa e dado o primeiro gole, que algo não está bem com o seu conteúdo.
Como identificá-lo, sem cometer gafes ou exageros?
Hoje em dia é raro
encontrar um vinho em mal estado, considerando os distintos controles dos
atributos que o caracterizam. Os avanços da tecnologia, o enfoque mais
científico em todas as etapas de produção e os diversos certificados de
qualidade fizeram com que a elaboração vinícola se tornasse um processo bem
mais controlado. Ademais, tornam-se evidentes os investimentos em inovação e
pesquisa nessa área, diante do rigor com que o mercado se comporta, cada vez
mais exigente, associado à influencia que sobre ele exercem a mídia, os
críticos especializados e os degustadores profissionais.
Um produtor consciente e
sensato não pode hoje se arriscar a colocar à disposição do consumo público um
vinho imperfeito, quanto ao sabor e ao aroma. Em casos extremos, há o perigo,
inclusive, de ele perder toda uma safra anual de trabalho, além dos inevitáveis
arranhões no nome da marca que pode levar anos para serem reparados.
Evidentemente, nos dias
atuais, ao deparar-se com esse tipo de desventura em algum restaurante, o
consumidor estará diante de um problema que só é capaz de se reproduzir na
proporção de uma para cada cem possibilidades. Mas tudo pode acontecer. E ele
tem de estar atento, muito bem informado, para saber quando um possível
‘defeito’ realmente o é, ou quando, presente de forma sutil, sobretudo nos vinhos
de décadas passadas, esse ‘defeito’ aparente pode não ser interpretado como um
demérito, mas como uma qualidade própria da bebida, por mais contraditório que
isto possa parecer. Sugerem-se, portanto, algumas pistas para identificar esses
possíveis ‘desdouros’ do vinho, que o tornariam intragável para o senso comum e
majoritário.
Geralmente, a causa
primeira da contaminação vinícola é a rolha, através de uma bactéria chamada
TRICLOROANISOL ou TCA. Ela prolifera na tampa da garrafa e ocasiona cheiro e paladar
pronunciados de cortiça, um persistente odor de madeira apodrecida e gosto de
papelão molhado, mofado. A degradação provém dos fenóis da rolha em conjugação
com as partículas de cloro dissolvidas no ar. Este, sem dúvida, é um dos
problemas que surge mais frequentemente nos vinhos mal conservados, em se
tratando de temperatura e umidade. Ademais, a própria rolha de cortiça, mal
fabricada, pode ser responsável pelo início desse processo inibidor do consumo.
Bastante embaraçoso, o problema dos chamados ‘vins bouchonnés’ (goût de
bouchon) atinge 5% dos exemplares no mercado mundial, o que equivale a nada
menos que um milhão de recipientes por ano.
Mas há episódios mais
indigestos, que podem contaminar de forma irreversível qualquer repasto fora de
casa. Quando se reconhecem odores mais desagradáveis no vinho, como os de
cebola, alho, repolho ou, segundo os que mais conhecem, de gambá, é certo que
se está diante de um caso mais grave e até perigoso (aroma de redução).
Supõe-se que o conteúdo sofreu a influência indesejável do SULFETO DE
HIDROGÊNIO, em razão do uso excessivo ou inadequado de fungicidas nos vinhedos
originários.Tecnicamente, certas leveduras, diante de condições extremas de
carência de nutrientes, passam a se alimentar de aminoácidos que contêm
enxofre, produzindo estes compostos indesejáveis. A percepção humana do
composto principal, chamado de ácido sulfídrico, dá-se pela associação imediata
a gás de cozinha, ovos podres ou carne em decomposição. Uma verdadeira tragédia.
Outro possível ‘defeito’
que se produz ainda nos vinhedos pode ser também notado no momento de abrir uma
garrafa de vinho, quando se percebe um odor adstringente, associado a currais,
esterco, bacon e até suor. Nesses casos, o consumidor se encontra diante
de um exemplar que foi certamente modificado pelo fungo BRETTANOMYCES (Brett),
muito importante na fabricação de cervejas, já que é resistente ao etanol, mas
que nos vinhos pode operar desacertos na fase final da fermentação. Encontra
predisposição especial para agir em conteúdos com baixa acidez e pouco teor
alcoólico. Indica também o uso sem cotrole de fungicidas, particularmente nos
exemplares de uvas tintas. Contudo, vale recordar que, para alguns
apreciadores, esse desajuste nem sempre é considerado tão grave, já que
atribuiria caráter e personalidade a certos vinhos tintos, como o célebre
Château Musar, libanês de grande tradição e estilo. Um aborrecimento moderado,
portanto, a depender do nível de exigência.
Quando o vinho apresenta
cheiro de cola, acetona, laca ou solvente, a mácula estará por certo vinculada
a outra nítida imperícia ou negligência no momento da fermentação alcoólica
natural, por conta de temperaturas demasiado altas às quais a bebida é
submetida. Isto condena a desejada perfeição do vinho por excesso de
ÁCIDO ACÉTICO, o componente volátil mais importante da bebida. É o que se
chamaria de vinho ‘avinagrado’, que pode ser resultante da utilização de uvas
em mau estado sanitário, reservatórios mal higienizados (os de aço inoxidável
diminuem o risco) e, principalmente, do errôneo armazenamento vertical das
embalagens, já que a rolha, permeável ao ar, ganha porosidade quando a garrafa
está sem contato com o vinho, facilitando a formação de bactérias que poderão
atacar o conteúdo. Um problema que pode afetar tanto vinhos tintos quanto
brancos. Todo cuidado é pouco.
Se um vinho jovem tem
contato excessivo com o oxigênio, durante o traslado de um barril para outro ou
na etapa do engarrafamento, é muito possível que gere o odor inapropriado de
maças podres ou rançosas. Mas muitas vezes esse efeito é gerado na seara
doméstica, pelo próprio consumidor que se torna
responsável pelo problema, esquecendo a embalagem aberta durante dias sem
respeitar o período adequado para o consumo. Conforme os entendidos, depois de
abertas, as garrafas devem ser guardadas na geladeira por tempo determinado: as
de espumantes, de 1 a 3 dias, com vedação apropriada; de brancos maduros,
de 3 a 5 dias, tapados com rolha; de tintos, de 3 a 5 dias, tapados com rolha;
e de rosados, de 5 a 7 dias, tapados com rolha.
Com relação aos exemplares
tintos, um dos cheiros mais comuns que se detecta ao abrir certas garrafas é
aquele associado às pipas de madeira onde repousaram, o que não se confunde com
a sutileza “amadeirada” dos grandes exemplares. Trata-se de um ‘defeito’ que
está vinculado à falta de higiene das barricas de armazenamento, gerando
inclusive odor a mofo ou terra úmida. Problema que o produtor eliminaria
facilmente com o esvaziamento completo dos barris, lavando-os com água morna e
carbonato de sódio antes de sua reutilização (depois de no máximo três
utilizações, as pipas de madeira deveriam ser descartadas e substituídas,
conforme a praxe).
Se o consumidor identifica
um forte odor forte de carvalho, nozes e compota de frutas, ou se o aspecto
visual do tinto apresenta um tom marrom alaranjado, quase da cor de ladrilho
(dourado acastanhado, demasiado escuro, no caso dos brancos), soam os alarmes
degustativos que indicam estar ele diante de um vinho que sofre de OXIDAÇÃO,
também pelo mau armazenamento, já que o oxigênio atua como catalisador de uma
série de reações indesejáveis e por vezes irreversíveis. Nesse caso, que
se ressaltem as notáveis características intrínsecas do Jerez (Xérèz ou Sherry)
e do Vinho da Madeira, fortificados e licorosos, nos quais a oxidação
controlada é uma virtude.
Frente a qualquer destas
reais desventuras ou azares, portanto, nada resta a fazer senão solicitar a
abertura de outra garrafa, o que um restaurante de categoria se apressará em
cumprir sem delongas, a fim de manter a qualidade do que oferece.
Mas se há outro fator que
desequilibra o pleno desfrute de um bom vinho, este deriva da temperatura com a
qual é servido. Não há o que discutir. Para cada tipo há uma temperatura ideal,
a fim de que ofereça ao paladar todas as suas qualidades intrínsecas. Para a
satisfação dos mais exigentes existem hoje vários acessórios específicos, até
digitais, que permitem determinar com precisão se o vinho a consumir se
encontra dentro dos limites inferiores ou superiores para cada tipologia.
Para a maioria dos vinhos
brancos sabe-se que a temperatura apropriada de armazenamento é a mesma que se
exige de maneira ideal para o consumo. Deve oscilar entre 10º e 14ºC. Os
brancos jovens, frescos e aromáticos, podem ser servidos na previsão mínima, e
os menos aromáticos a 12ºC. De outra parte, os vinhos brancos maduros, produtos
de alguns anos de engarrafamento, suportam temperaturas mais altas e podem ser
oferecidos e consumidos no limite de 14ºC.
Note-se que, segundo os
especialistas, o refrigerador é considerado um meio muito ineficaz para
esfriar o vinho, simplesmente porque o ar é ótimo isolante térmico. O método
mais eficiente seria o da imersão completa da garrafa em água com gelo, já que
a substância líquida formada por hidrogênio e oxigênio (H2O) constitui-se no
condutor perfeito, tendo sempre presente que cubos de gelo derretem rápido a
depender do ambiente.
Nesse sentido, seria
necessário identificar um balde que seja suficientemente profundo para
submergir a garrafa inteira. De outra forma, o certo é colocar primeiro o
pescoço e depois dar volta na garrafa, para que o processo no balde se realize
de forma integral. Transcorridos de oito a dez minutos, a água gelada
permitirá reduzir a temperatura da garrafa de 18º para 13ºC. Na geladeira essa
operação levaria uma hora, para se lograr o mesmo resultado.
Há que se desmistificar
também alguns aprendizados em relação aos vinhos tintos, já que se acredita
erroneamente que a temperatura ambiente é a norma tradicional para o seu
consumo. Isto seria verdade nos países de clima frio e não, certamente, nos
trópicos. Submetidos a 20ºC ou mais de temperatura exterior alguns tintos
poderiam perder sua garra e as virtudes refrescantes que o devem caracterizar.
Assim, a temperatura de
serviço para os tintos jovens, com poucos taninos, rondaria entre 14º e 16ºC,
enquanto a ideal para os exemplares com mais corpo e com taninos mais
acentuados poderia chegar até os 18ºC. Os tintos envelhecidos, contudo,
chamados ‘de excelência’ pelo número de anos na garrafa, extremamente
encorpados, admitiriam ser consumidos a 18º e, excepcionalmente, até a 20ºC.
Nesse sentido, o método
mais apropriado para que estes últimos alcancem a temperatura correta,
sobretudo em lugares de climas mais frios, seria a submersão da garrafa em água
quente a 21ºC, de oito a dez minutos, para subir a temperatura dos 13º aos
18ºC, pelo menos. Alguns preferem envolver a garrafa com um guardanapo grande
de pano, quase ensopado de água fervendo (processo chamado de ‘chambrer un
vin’). Caso necessário, a depender do tipo de tinto, o processo será o inverso:
submergi-lo em água gelada para lograr diminuir-lhe a temperatura. Nesses
casos, é sempre pudente realizar uma ou outra operação antes de decantá-los.
E atenção: nos vinhos,
cristais e borras não são necessariamente ‘defeitos’. Associados ao TARTARATO
ou às ANTOCIANINAS, os sedimentos podem em geral indicar processo de
estabilização leve, tanto em tintos quanto em brancos. O vinho tem um curso
normal de envelhecimento e maturação. Esses
resíduos naturais, portanto, decorrem de reações químicas constantes e revelam
nada mais do que a evolução de certas bebidas fortificadas em garrafa, sem
riscos ao consumo depois de devidamente filtradas e decantadas. Que o digam
alguns Oportos, sobretudo os Vintages com 10, 20, 30 anos.
Finalmente, não há que se
deixar impressionar demasiado pelas polêmicas em torno desse assunto. Sobretudo
quando se imagina a hipótese de fazer uso de todos os recursos hoje disponíveis
para a produção de um vinho sem quaisquer ‘defeitos’. Do contrário, estaríamos
falando de bebidas fermentadas, padronizadas e quase pasteurizadas. Ou seja,
falando de vinhos que, devido a um intenso tratamento e manipulação, perderiam
seu senso de ‘terroir’ e não transmitiriam nenhuma característica do trabalho e
até da filosofia do seu produtor.
Assim sendo, talvez os
pequenos ‘defeitos’ aproximem os produtos vinícolas de uma condição mais
humana, falível por natureza e, às vezes, interpretados até como destacadas
qualidades. Atentos, pois, às gafes, aos mal-entendidos e aos excessos, tanto
apreciativos quanto depreciativos. Tudo com a devida informação, senso de
oportunidade e de proporção no julgamento. O garçom, certamente, nunca é o
culpado.
Silvio Assumpção
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