domingo, 8 de novembro de 2015

GARÇOM, O VINHO NÃO ESTÁ BOM!

Valho-me de aprendizagem recente, lograda com a experiência dos sommeliers da Bodega Garzón no Uruguai, e dos conselhos de uma edição da Revista Adega, para destacar alguns elementos a respeito do consumo dos vinhos, sobretudo quando se percebe depois de aberta a garrafa e dado o primeiro gole, que algo não está bem com o seu conteúdo. Como identificá-lo, sem cometer gafes ou exageros?
                                                                       

Hoje em dia é raro encontrar um vinho em mal estado, considerando os distintos controles dos atributos que o caracterizam. Os avanços da tecnologia, o enfoque mais científico em todas as etapas de produção e os diversos certificados de qualidade fizeram com que a elaboração vinícola se tornasse um processo bem mais controlado. Ademais, tornam-se evidentes os investimentos em inovação e pesquisa nessa área, diante do rigor com que o mercado se comporta, cada vez mais exigente, associado à influencia que sobre ele exercem a mídia, os críticos especializados e os degustadores profissionais.

Um produtor consciente e sensato não pode hoje se arriscar a colocar à disposição do consumo público um vinho imperfeito, quanto ao sabor e ao aroma. Em casos extremos, há o perigo, inclusive, de ele perder toda uma safra anual de trabalho, além dos inevitáveis arranhões no nome da marca que pode levar anos para serem reparados. 

Evidentemente, nos dias atuais, ao deparar-se com esse tipo de desventura em algum restaurante, o consumidor estará diante de um problema que só é capaz de se reproduzir na proporção de uma para cada cem possibilidades. Mas tudo pode acontecer. E ele tem de estar atento, muito bem informado, para saber quando um possível ‘defeito’ realmente o é, ou quando, presente de forma sutil, sobretudo nos vinhos de décadas passadas, esse ‘defeito’ aparente pode não ser interpretado como um demérito, mas como uma qualidade própria da bebida, por mais contraditório que isto possa parecer. Sugerem-se, portanto, algumas pistas para identificar esses possíveis ‘desdouros’ do vinho, que o tornariam intragável para o senso comum e majoritário.

Geralmente, a causa primeira da contaminação vinícola é a rolha, através de uma bactéria chamada TRICLOROANISOL ou TCA. Ela prolifera na tampa da garrafa e ocasiona cheiro e paladar pronunciados de cortiça, um persistente odor de madeira apodrecida e gosto de papelão molhado, mofado. A degradação provém dos fenóis da rolha em conjugação com as partículas de cloro dissolvidas no ar. Este, sem dúvida, é um dos problemas que surge mais frequentemente nos vinhos mal conservados, em se tratando de temperatura e umidade. Ademais, a própria rolha de cortiça, mal fabricada, pode ser responsável pelo início desse processo inibidor do consumo. Bastante embaraçoso, o problema dos chamados ‘vins bouchonnés’ (goût de bouchon) atinge 5% dos exemplares no mercado mundial, o que equivale a nada menos que um milhão de recipientes por ano.

Mas há episódios mais indigestos, que podem contaminar de forma irreversível qualquer repasto fora de casa. Quando se reconhecem odores mais desagradáveis no vinho, como os de cebola, alho, repolho ou, segundo os que mais conhecem, de gambá, é certo que se está diante de um caso mais grave e até perigoso (aroma de redução). Supõe-se que o conteúdo sofreu a influência indesejável do SULFETO DE HIDROGÊNIO, em razão do uso excessivo ou inadequado de fungicidas nos vinhedos originários.Tecnicamente, certas leveduras, diante de condições extremas de carência de nutrientes, passam a se alimentar de aminoácidos que contêm enxofre, produzindo estes compostos indesejáveis. A percepção humana do composto principal, chamado de ácido sulfídrico, dá-se pela associação imediata a gás de cozinha, ovos podres ou carne em decomposição. Uma verdadeira tragédia.

Outro possível ‘defeito’ que se produz ainda nos vinhedos pode ser também notado no momento de abrir uma garrafa de vinho, quando se percebe um odor adstringente, associado a currais, esterco, bacon e até suor.  Nesses casos, o consumidor se encontra diante de um exemplar que foi certamente modificado pelo fungo BRETTANOMYCES (Brett), muito importante na fabricação de cervejas, já que é resistente ao etanol, mas que nos vinhos pode operar desacertos na fase final da fermentação. Encontra predisposição especial para agir em conteúdos com baixa acidez e pouco teor alcoólico. Indica também o uso sem cotrole de fungicidas, particularmente nos exemplares de uvas tintas. Contudo, vale recordar que, para alguns apreciadores, esse desajuste nem sempre é considerado tão grave, já que atribuiria caráter e personalidade a certos vinhos tintos, como o célebre Château Musar, libanês de grande tradição e estilo. Um aborrecimento moderado, portanto, a depender do nível de exigência.

Quando o vinho apresenta cheiro de cola, acetona, laca ou solvente, a mácula estará por certo vinculada a outra nítida imperícia ou negligência no momento da fermentação alcoólica natural, por conta de temperaturas demasiado altas às quais a bebida é submetida.  Isto condena a desejada perfeição do vinho por excesso de ÁCIDO ACÉTICO, o componente volátil mais importante da bebida. É o que se chamaria de vinho ‘avinagrado’, que pode ser resultante da utilização de uvas em mau estado sanitário, reservatórios mal higienizados (os de aço inoxidável diminuem o risco) e, principalmente, do errôneo armazenamento vertical das embalagens, já que a rolha, permeável ao ar, ganha porosidade quando a garrafa está sem contato com o vinho, facilitando a formação de bactérias que poderão atacar o conteúdo. Um problema que pode afetar tanto vinhos tintos quanto brancos. Todo cuidado é pouco.

Se um vinho jovem tem contato excessivo com o oxigênio, durante o traslado de um barril para outro ou na etapa do engarrafamento, é muito possível que gere o odor inapropriado de maças podres ou rançosas.  Mas muitas vezes esse efeito é gerado na seara doméstica, pelo próprio consumidor que se torna responsável pelo problema, esquecendo a embalagem aberta durante dias sem respeitar o período adequado para o consumo. Conforme os entendidos, depois de abertas, as garrafas devem ser guardadas na geladeira por tempo determinado: as de espumantes, de 1 a 3 dias, com vedação apropriada; de brancos maduros, de 3 a 5 dias, tapados com rolha; de tintos, de 3 a 5 dias, tapados com rolha; e de rosados, de 5 a 7 dias, tapados com rolha.
                                   
                                      
Com relação aos exemplares tintos, um dos cheiros mais comuns que se detecta ao abrir certas garrafas é aquele associado às pipas de madeira onde repousaram, o que não se confunde com a sutileza “amadeirada” dos grandes exemplares. Trata-se de um ‘defeito’ que está vinculado à falta de higiene das barricas de armazenamento, gerando inclusive odor a mofo ou terra úmida. Problema que o produtor eliminaria facilmente com o esvaziamento completo dos barris, lavando-os com água morna e carbonato de sódio antes de sua reutilização (depois de no máximo três utilizações, as pipas de madeira deveriam ser descartadas e substituídas, conforme a praxe).

Se o consumidor identifica um forte odor forte de carvalho, nozes e compota de frutas, ou se o aspecto visual do tinto apresenta um tom marrom alaranjado, quase da cor de ladrilho (dourado acastanhado, demasiado escuro, no caso dos brancos), soam os alarmes degustativos que indicam estar ele diante de um vinho que sofre de OXIDAÇÃO, também pelo mau armazenamento, já que o oxigênio atua como catalisador de uma série de reações indesejáveis e por vezes irreversíveis. Nesse caso, que se ressaltem as notáveis características intrínsecas do Jerez (Xérèz ou Sherry) e do Vinho da Madeira, fortificados e licorosos, nos quais a oxidação controlada é uma virtude. 

Frente a qualquer destas reais desventuras ou azares, portanto, nada resta a fazer senão solicitar a abertura de outra garrafa, o que um restaurante de categoria se apressará em cumprir sem delongas, a fim de manter a qualidade do que oferece.
Mas se há outro fator que desequilibra o pleno desfrute de um bom vinho, este deriva da temperatura com a qual é servido. Não há o que discutir. Para cada tipo há uma temperatura ideal, a fim de que ofereça ao paladar todas as suas qualidades intrínsecas. Para a satisfação dos mais exigentes existem hoje vários acessórios específicos, até digitais, que permitem determinar com precisão se o vinho a consumir se encontra dentro dos limites inferiores ou superiores para cada tipologia.

Para a maioria dos vinhos brancos sabe-se que a temperatura apropriada de armazenamento é a mesma que se exige de maneira ideal para o consumo. Deve oscilar entre 10º e 14ºC.  Os brancos jovens, frescos e aromáticos, podem ser servidos na previsão mínima, e os menos aromáticos a 12ºC. De outra parte, os vinhos brancos maduros, produtos de alguns anos de engarrafamento, suportam temperaturas mais altas e podem ser oferecidos e consumidos no limite de 14ºC.

Note-se que, segundo os especialistas, o refrigerador é considerado um meio muito ineficaz para esfriar o vinho, simplesmente porque o ar é ótimo isolante térmico. O método mais eficiente seria o da imersão completa da garrafa em água com gelo, já que a substância líquida formada por hidrogênio e oxigênio (H2O) constitui-se no condutor perfeito, tendo sempre presente que cubos de gelo derretem rápido a depender do ambiente.

Nesse sentido, seria necessário identificar um balde que seja suficientemente profundo para submergir a garrafa inteira. De outra forma, o certo é colocar primeiro o pescoço e depois dar volta na garrafa, para que o processo no balde se realize de forma integral. Transcorridos de oito a dez minutos, a água gelada permitirá reduzir a temperatura da garrafa de 18º para 13ºC. Na geladeira essa operação levaria uma hora, para se lograr o mesmo resultado.

                                                                    

Há que se desmistificar também alguns aprendizados em relação aos vinhos tintos, já que se acredita erroneamente que a temperatura ambiente é a norma tradicional para o seu consumo. Isto seria verdade nos países de clima frio e não, certamente, nos trópicos. Submetidos a 20ºC ou mais de temperatura exterior alguns tintos poderiam perder sua garra e as virtudes refrescantes que o devem caracterizar.

Assim, a temperatura de serviço para os tintos jovens, com poucos taninos, rondaria entre 14º e 16ºC, enquanto a ideal para os exemplares com mais corpo e com taninos mais acentuados poderia chegar até os 18ºC. Os tintos envelhecidos, contudo, chamados ‘de excelência’ pelo número de anos na garrafa, extremamente encorpados, admitiriam ser consumidos a 18º e, excepcionalmente, até a 20ºC.

Nesse sentido, o método mais apropriado para que estes últimos alcancem a temperatura correta, sobretudo em lugares de climas mais frios, seria a submersão da garrafa em água quente a 21ºC, de oito a dez minutos, para subir a temperatura dos 13º aos 18ºC, pelo menos. Alguns preferem envolver a garrafa com um guardanapo grande de pano, quase ensopado de água fervendo (processo chamado de ‘chambrer un vin’). Caso necessário, a depender do tipo de tinto, o processo será o inverso: submergi-lo em água gelada para lograr diminuir-lhe a temperatura. Nesses casos, é sempre pudente realizar uma ou outra operação antes de decantá-los.
                                                                     

E atenção: nos vinhos, cristais e borras não são necessariamente ‘defeitos’. Associados ao TARTARATO ou às ANTOCIANINAS, os sedimentos podem em geral indicar processo de estabilização leve, tanto em tintos quanto em brancos. O vinho tem um curso normal de envelhecimento e maturaçãoEsses resíduos naturais, portanto, decorrem de reações químicas constantes e revelam nada mais do que a evolução de certas bebidas fortificadas em garrafa, sem riscos ao consumo depois de devidamente filtradas e decantadas. Que o digam alguns Oportos, sobretudo os Vintages com 10, 20, 30 anos.

Finalmente, não há que se deixar impressionar demasiado pelas polêmicas em torno desse assunto. Sobretudo quando se imagina a hipótese de fazer uso de todos os recursos hoje disponíveis para a produção de um vinho sem quaisquer ‘defeitos’. Do contrário, estaríamos falando de bebidas fermentadas, padronizadas e quase pasteurizadas. Ou seja, falando de vinhos que, devido a um intenso tratamento e manipulação, perderiam seu senso de ‘terroir’ e não transmitiriam nenhuma característica do trabalho e até da filosofia do seu produtor.


Assim sendo, talvez os pequenos ‘defeitos’ aproximem os produtos vinícolas de uma condição mais humana, falível por natureza e, às vezes, interpretados até como destacadas qualidades. Atentos, pois, às gafes, aos mal-entendidos e aos excessos, tanto apreciativos quanto depreciativos. Tudo com a devida informação, senso de oportunidade e de proporção no julgamento. O garçom, certamente, nunca é o culpado.


                                        Silvio Assumpção

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