Um Sirah simplesmente notável
UM SYRAH SIMPLESMENTE NOTÁVEL
Tendo vivido no Chile, naturalmente me deliciei com os excelentes vinhos Carménère lá oferecidos ao consumo, cujas vantagens comparativas de produção são inconfundíveis. Mas acho que essa particular marca de origem vai mudar, com o passar dos anos. Sou daqueles que se rendeu aos encantos dos Syrah chilenos. Não por acaso, os melhores e mais premiados vinhos produzidos pelo país andino, nos últimos anos, foram dessa cepa muito singular, tecnicamente oriunda do Vale do Rhône na França, cujo cultivo se estendeu pela Itália, pela Espanha e pela Suíça, além das investidas pelo Novo Mundo, nos Estados Unidos, Argentina, África do Sul e Austrália. Mas o que a maioria dos aficionados não sabe é que seu interesse histórico remonta aos tempos de Jesus Cristo.
Não vou me referir aqui aos varietais clássicos como o Lapostolle, o Montes Alpha, o Grey, o Tamaya, o Marques de Casa Concha, o Santa Rita, o Casillero del Diablo, o Castillo de Molina, o Viña Maipo, o Tarapacá, o Arboleda, o Maycas del Limari, o Legado, o Estampa Gold, o Leyda e o 1865, entre tantos rótulos consagrados, além dos excelentes ‘blends’ que o Chile produz com a uva Syrah como titular. Quero referir-me a uma verdadeira raridade, que foi lograda graças à tenacidade e ao esforço de seus produtores, associados a condições ambientais únicas que lhe permitiram criar um verdadeiro néctar para o deleite humano. Seu nome: Tiraziš.
A terminologia já aponta algo raro. Na verdade o é. Trata-se de um vinho feito meticulosamente, que expressa a essência de sua origem geográfica, o Valle de Casablanca, guardado sob a atenção exclusiva da bodega House Casa del Vino, o centro de enoturismo do renomado Grupo Belém. Seu enólogo, Sven Bruchfeld, tem a dimensão exata da sua criação e do êxito justificado.
Menos tradicional que o Valle do Maipo, o de Casablanca começou sua produção de vinhos em 1982 e vem crescendo rapidamente desde então. São mais de cinco mil hectares de plantações nos arredores da Ruta 68, estrada que vai de Santiago à região costeira de Viña del Mar e Valparaíso. Hoje é considerado o melhor lugar do Chile para a produção de vinhos brancos, principalmente o Sauvignon Blanc e o Chardonnay. Entre os tintos destacam-se o Pinot Noir e o Syrah, particularmente adaptados à influência marítima que traz uma névoa matinal do Oceano Pacífico, atuante como moderador de temperatura. Além disso, as tardes frescas que caracterizam a região dos vales interiores chilenos favorecem a maturação adequada das uvas e a produção de vinhos tintos de clima frio.
As uvas com as quais se elaboraram manualmente o Tiraziš provêm de tão somente 3,68 hectares de vinhedos plantados numa zona classificada como “en cabeza”, sem cercas nem as treliças tradicionais, sobre as ladeiras do Monte Algarrobo. Esses vinhedos quase não requerem trabalhos agrícolas, permitindo que as plantas possam explorar livremente o solo com a extração de nutrientes no seu lugar de origem. Ademais, no verão as folhas atuam como sombra natural que protegem as uvas dos raios solares, assegurando-lhes atributos organolépticos.
O resultado final do processo é um exemplar engarrafado de produção limitada que, graças ao nível de acidez equilibrada com seus taninos suaves, assegura um potencial de conservação de 10 anos, enquanto para consumi-lo se recomenda uma temperatura de 16 °C. Possui cor violácea, matizes vermelhos, aroma de pimenta branca e frutas negras, combinados com canela e um toque herbáceo.
Efetivamente, na língua elamita, Tiraziš significa Shyraz, o nome de uma cidade situada no sudoeste do Irã que é a capital da província de Fars. Em algumas partes do mundo, o Syrah é conhecido como Shyraz e acredita-se que foi no antigo reino da Pérsia que essa cepa teve origem. Dalí se abastecia de vinho as regiões adjacentes durante a Antiguidade.
Segundo a tradição ancestral, no palácio real daquela cidade histórica, onde habitava o soberano Djemchid junto ao seu harém, um jarrão com uvas foi esquecido pelos que manuseavam os víveres. Depois de algum tempo, um servidor palaciano o encontrou e dentro dele identificou um líquido nebuloso, borbulhante e de odor desconhecido. Intrigado, pendurou no recipiente de barro um aviso com a palavra "veneno" e o guardou.
Uma das esposas do rei, que se encontrava muito deprimida, um dia decidiu suicidar-se. Encontrou casualmente o tal "veneno" na dispensa e o ingeriu. Começou então a sentir um bem-estar inexplicável e correu feliz de volta ao palácio, cantando e dançando. O soberano ouviu falar da transformação inexplicável da concubina e consultou a corte sobre o ocorrido. Ao saber da origem da misteriosa euforia, o rei bebeu entusiasmado a poção desconhecida e experimentou os mesmos efeitos. Decretou por fim que aquelas uvas cultivadas fossem guardadas tal como se fizera naquele jarro de barro original, passando o apreciado licor a ser parte das mais caras tradições persas.
Conforme os historiadores e estudiosos do Evangelho, se de fato se bebeu vinho nas Bodas de Canaã e na Última Ceia, esse vinho era provavelmente um Tiraziš, muito típico na região do Oriente Médio.
Silvio Assumpção
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