Segunda Parte
Não foi senão a partir dos primeiros anos da década de 1980 que a
influência europeia em matéria de culinária oficial diminuiu no Brasil.
Primeiro, pelas dificuldades orçamentárias e os custos de importação de certos
produtos estrangeiros; segundo, pela progressiva escassez em Brasília de chefes
capazes de manter o nível a que o Ministério das Relações Exteriores estava
acostumado no Rio de Janeiro, antes da transferência da capital; e terceiro,
pela própria imposição da realidade cultural brasileira, cuja riqueza culinária
e vinícola passou a, digamos, adquirir cidadania e romper tradições.
De forma mais ou menos simbólica, o grande ponto de inflexão nessa
trajetória gastronômica foi justamente a visita oficial ao Brasil do presidente
francês, o socialista François Mitterrand, em outubro de 1985, como o primeiro
chefe de Estado estrangeiro a ser recebido na administração de José Sarney - um
político de estilo extremamente protocolar e sempre cioso das liturgias que
envolvem o exercício da suprema magistratura da nação.
Para os agentes do cerimonial do Estado era, portanto, o grande
momento de teste, após 15 anos de funcionamento do Itamaraty na nova
capital. Tudo deveria ser e estar impecável. Aqueles que vivemos de perto
aqueles dias, contudo, nunca poderemos esquecer a quase “débâcle” em que se
transformou o episódio de recepção oficial do mandatário francês e de sua
mulher, Danielle Mitterrand.
Foi o maior banquete até então oferecido no Itamaraty, com mais de
quatro centenas de convidados, distribuídos com lugares marcados. Ao estilo
tradicional dos eventos diplomáticos predominantes nos tempos de Juscelino
Kubitschek no Rio de Janeiro, depois do jantar reuniram-se no palácio outros
1200 convidados para uma recepção. Não bastassem todos os desafios logísticos e
de organização, pretendeu-se levar ao limite as experiências criativas em matéria
de cardápios oficiais, tendo como prato principal do banquete uma moqueca de
peixe à brasileira, servida com pirão e acaçá de arroz, regada com espumante do início ao
fim. Até ai tudo bem, apesar
das possíveis controvérsias quanto à combinação inovadora.
Ocorre que os organizadores, na melhor das boas intenções,
desafiaram o perigo e resolveram ‘relativisar’ a participação do banqueteiro
tradicional da Casa de Rio Branco, no comando da cozinha do palácio desde a
década de 1960. Chamaram para a preparação do repasto uma distinta dama
pernambucana, muito consagrada nas artes culinárias e habituada à idealização
exitosa de jantares em “petit comitê”, mas totalmente inexperiente em relação
ao atendimento simultâneo de um público volumoso e exigente, constituído das
mais altas autoridades da política, da diplomacia, da economia, das finanças e
dos meios nacionais e internacionais de imprensa, que ocupavam os 430 lugares à
espera do melhor. Afinal, o homenageado era nada menos do que o presidente da
França e não daria para errar justamente naquela oportunidade.
Mas foi um verdadeiro desastre, cujo significado político e
consequências mediáticas repletaram os editoriais e as colunas sociais mais
importantes do País durante semanas, levando o chanceler, o secretário geral
das Relações Exteriores e o chefe do Cerimonial a pedirem ao Presidente Sarney
o relevamento das funções em diversas oportunidades, até que as coisas se
acalmaram. Apesar das criticas e intrigas generalizadas nos gabinetes da
Esplanada e nos jornais, em defesa dos então responsáveis pela logística
protocolar prevaleceu o sucesso do almoço que Sarney ofereceu a Mitterrand no
dia seguinte, na Granja do Torto. Lá o casal visitante conheceu de perto o que
temos de melhor: um suculento e variado churrasco de luxo, preparado por equipe
gaúcha que se deslocou a Brasília trazendo na bagagem climatizada as melhores
carnes da Região Sul, acompanhado da degustação de cervejas artesanais oriundas
de diferentes fabricantes nacionais e tendo coloridos sorvetes de frutas
tropicais trazidos de avião do Nordeste como “grand finale”.
Mas não deu para compensar totalmente a decepção anterior. O
jantar de retribuição do casal Mitterrand na Embaixada da França, no dia
seguinte, foi de tal maneira “francês”, impecável em tudo, que ficamos
irremediavelmente mal na fita. O que talvez tenha levado o então chanceler, o
banqueiro Olavo Setúbal, a declarar aos assessores do gabinete, depois de ser
chamado ao telefone por Sarney para levar um pito: “No Itamaraty, política externa não dá
bolo, o que dá bolo aqui é a comida”. Os detalhes lamentáveis daqueles episódios de 1985 estão
registrados no livro O Cerrado de Casaca, do jornalista Manoel
Mendes. Segundo ele, o Itamaraty “improvisou”, contrariando a mais cara e
rigorosa regra que garante o sucesso da instituição desde os tempos de Rio
Branco. Em linguagem popular, não se troca o certo pelo duvidoso. E afinal, até
hoje recordada, a “moqueca do Mitterrand” entrou para os anais.
Serviu a lição. A irrefutável e consagrada competência dos
diplomatas brasileiros, sobretudo os dedicados à área do cerimonial, na qual a
administração de vaidades é uma constante, possibilitou ao Itamaraty dar a
volta por cima e consolidar o uso de opções culinárias genuinamente brasileiras
nos menus oficiais da República. Como já assinalado, o Brasil tem uma
gastronomia rica e diversificada que é distinguida por nacionais e
estrangeiros. E os presidentes da República sabem que, com os cuidados
devidos para não ferir suscetibilidades e manter o respeito necessário pelas
tradições e restrições alimentares dos visitantes ilustres, a culinária
brasileira é uma marca registrada das relações exteriores de qualquer governo.
E sempre acompanhada, alternadamente para evitar exclusivismos, dos vinhos
produzidos nas Regiões Sul e Nordeste, particularmente no Vale do São
Francisco. Collor, Itamar, FHC, Lula e a atual presidenta adotaram esse padrão,
transformando as iguarias e os cardápios franceses em coisas do passado.
Um exemplo definitivo, entre os muitos que já vigoram há trinta
anos com sucesso, é o cardápio oferecido ao presidente da Rússia,
Vladimir Putin, em 2004. Nele se pode aquilatar o quanto de inovação já se
logrou em relação à oferta de pratos brasileiros, entre os quais já se incluem,
ademais das Moquecas Nordestinas e Capixaba, o tradicional Cozido, o Picadinho
com Farofa de Ovos e Banana, a Carne Seca com Abóbora, a Paçoca Nordestina, os
Camarões na Moranga, o Baião de Dois, o Feijão Tropeiro, o Arroz de Carreteiro,
o Surubim defumado, Acarajé e Casquinha de Siri, além dos sucos, doces e sorvetes feitos com frutas tropicais, entre muitas outras iguarias regionais de destaque.
Menu
Camarões flambados ao molho de ragu com purê de mandioca
Filé-mignon ao molho de pimenta verde
Suflé de goiabada com nuvem de catupiry
Vinhos
Casa Valduga Premium Chardonnay, 2004
Casa Valduga Cabernet Sauvignon Premium, 1999
Casa Valduga Asti
Em matéria publicada em abril de 2015 na Folha de São Paulo, a
jornalista Flávia Foreque corrobora os avanços logrados pela diplomacia nesse
particular, ao levar para a cozinha oficial da República receitas e
ingredientes nacionais para conquistar autoridades estrangeiras, com aquilo que
temos de mais típico e de extrema qualidade para explorar positivamente.
Naturalmente, com elaboração esmerada e apresentação mais requintada.
Ela refere-se com justiça a essa prática, chamada de
‘gastrodiplomacia’, como uma estratégia popularizada em 2002 pela Tailândia com
o objetivo de divulgar a própria culinária, o que foi seguido posteriormente
pelo Peru, Japão e Coreia do Sul. Nada que a França não fizesse desde sempre,
reconhecendo a qualidade da sua gastronomia e utilizando-a como um elemento
cultural a serviço do instrumental de acercamento entre países. Como dizia um
antigo embaixador francês no Brasil, “quando a culinária é boa e os vinhos
também, a língua se delicia e as pessoas se aproximam”. Recorde-se a propósito,
sobre essa prática centenária, a assertiva de Charles Maurice de Talleyrand,
diplomata e estadista francês, chanceler de Napoleão, quando nomeado em 1830
para exercer o cargo de embaixador na Inglaterra. Consultado sobre quantos
servidores desejaria receber para auxiliá-lo no desempenho da missão, ele
respondeu: “apenas um bom cozinheiro, é o que eu peço”.
Ao resgatar as curiosidades elencadas por Carlos Cabral no
livro A Mesa e a Diplomacia Brasileira, a jornalista Foreque fala com
propriedade das precauções quanto ao perfil dos visitantes para a elaboração
dos menus que lhes serão servidos, com consultas prévias a assessores sobre
eventuais dietas, alergias e restrições religiosas, por exemplo. Ressalta
também as características pessoais de alguns altos mandatários brasileiros em
relação às atividades sociais que protagonizam, primando alguns por criar uma
atmosfera mais intimista e descontraída em oposição à pompa que em geral
predomina nos ambientes palacianos.
Foi assim, por exemplo, que o Presidente
Lula aboliu pela primeira vez a tradição sempre em voga no Itamaraty do
“serviço à francesa”, pelo qual os convidados recebem ao mesmo tempo o prato já
elaborado, à mesa e por meio de garçons, e introduziu nos banquetes de Estado o
sistema de bufê, muito mais lento, pelo qual cada comensal sai da cadeira e se
serve, ele mesmo, com a possibilidade de repetir o repasto se lhe aprouver, sem
as formalidades da ‘mis en place’. Menos informal, a Presidente Dilma preferiu
o sistema anterior, consagrado na maioria dos países, sob a alegação de
economia de tempo e para evitar certo constrangimento pela permanência
inconfortável dos homenageados e demais convidados em longas filas, esperando
para se servir e, afinal, desfrutar das iguarias.
Mesmo respeitando os estilos pessoais de cada mandatário no
exercício do poder, é certo dizer que o Itamaraty faz milagres, considerando as
permanentes restrições orçamentárias e o fato de que, desde a sua inauguração
em Brasília, nunca contou com as facilidades estruturais e de pessoal
necessárias a um bom desempenho sistemático em matéria de culinária.
Infelizmente, jamais se conseguiu que as atividades do serviço de cozinha
desenvolvidas no principal e mais requisitado palácio da República, de grandes
dimensões e bem planejado, servissem às reais necessidades do Ministério em
matéria de cerimonial.
Com a desculpa de que um “chef de cuisine” de gabarito teria de
ganhar mais do que o presidente da República, nunca foi possível fazer dela uma
cozinha bem administrada e de alto nível, nos moldes, por exemplo, do Quay
d’Orsay, que conta com um corpo permanente de chefes que não só atendem às
necessidades do Governo francês, como também treinam profissionais, aqueles que
poderão vir a ser grandes protagonistas nas embaixadas da França no exterior ou
terão outros empregos de destaque.
Recordo-me que durante a gestão do embaixador Ramiro Saraiva
Guerreiro, chanceler de Figueiredo durante seis anos, foi convidado a vir ao
Brasil um já aposentado chefe italiano para realizar trabalho de consultoria em
relação às dificuldades de funcionamento da cozinha do Itamaraty. O ilustre
profissional, que havia sido um extraordinário cozinheiro durante anos em
embaixadas do Brasil no exterior, relacionou tudo o que seria necessário para a
profissionalização dos serviços palacianos em Brasília, esbarrando em
restrições orçamentárias que não puderam ser contornadas. Tudo ficou como está
até os dias presentes, com o recurso a serviços terceirizados e na dependência
de licitações obrigatórias pela legislação, que nem sempre resultam no melhor
serviço apesar do menor preço.
Não obstante a recordação dessa circunstância histórica em favor
dos responsáveis pela diplomacia brasileira, impecáveis não apenas nas tarefas
substantivas como também na área protocolar, todas enfocadas com o mesmo
profissionalismo e dedicação exclusiva, o que vale ressaltar neste texto nada
mais é do que a divulgação
das experiências práticas que se incrementam e se aperfeiçoam a cada banquete
oficial, realçando o que o Brasil tem de melhor.
Não é preciso que os menus de Estado estejam escritos em
tupi-guarani para que os estrangeiros reconheçam as nossas qualidades
irrefutáveis de bem servir, contando com tudo de extraordinário que o País tem
para oferecer. Com austeridade e correção apenas, procura-se oferecer o melhor,
dentro das condições que se apresentam. Como assinala metaforicamente o
diplomata e escritor Alexandre Vidal Porto em artigo recente, referindo-se às
reticências com que a atividade diplomática é enfocada no Brasil, sobretudo nos
últimos anos, o que poderia aplicar-se às singulares funções do cerimonial de
Estado, não é porque uma coisa é dourada que ela é supérflua. Ninguém espera
que na sétima economia do mundo predomine o miserê, malgrado todos os seus
problemas circunstanciais. É assim em todos os países civilizados do mundo,
onde predominem o bom senso e a sensibilidade política, capazes de reconhecer
os benefícios que uma boa mesa pode proporcionar às relações internacionais. O
Barão do Rio Branco, patrono e maior símbolo da diplomacia brasileira, já
acreditava nisso e trabalhava para a sua manutenção no longo prazo. E hoje, com
as inovações e os desafios constantes, devemos cultuar-lhe a memória também
nesse particular, a qualquer preço.
Assim sendo, os livros que se detiveram sobre o assunto, citados e
tomados como referência neste logo texto, revelam-se bastante interessantes e
credenciados para resgatar e consolidar a forma como tem evoluído a gastronomia
brasileira desde o Século XIX, demonstrando às atuais e futuras gerações uma
parte oculta da cultura de um povo e de uma grande nação. Vale a leitura.
Silvio
Assumpção