Todas as vezes que se reúnem os especialistas, para decidir a cada ano a lista dos melhores restaurantes do mundo, o clima esquenta. Muitos interessados no universo da gastronomia se guiam por essa lista de divulgação mundial, que eleva às alturas alguns chefes internacionais, e muitos outros a questionam, sobretudo aqueles não incluídos ou preteridos. Tudo isso tem a ver com prestígio e muito, muito retorno financeiro. Figurar nessa classificação equivale a assegurar repercussões positivas quanto ao aumento de reservas e concorrência do público. Entre os donos e as figuras destacadas que conduzem a cozinha desses restaurantes que competem fica sempre a expectativa da vitória.
Mas no mundo da gastronomia internacional há severos questionamentos sobre essa disputa anual que culmina na distinção de uns em detrimento de outros. A crítica se concentra, sobretudo, na metodologia utilizada pelo conclave de julgadores, visto que, segundo dizem, não se baseiam em nenhum critério especifico para a eleição dos restaurantes alçados à categoria de “melhores do mundo”. Nada há entre os requisitos que passe perto de apreciações hoje básicas, como as de natureza sanitária, nem as de cunho deontológico, segundo o qual as escolhas são moralmente necessárias, proibidas ou permitidas. Nada obstante, esse "barômetro anual do gosto gastronômico", tal como o definem seus organizadores, adquiriu notoriedade e influencia crescentes desde seu lançamento em 2002.
Recorde-se que em 2014, a classificação organizada pelo grupo britânico dos meios de comunicação e eventos William Reed coroou entusiasticamente o estabelecimento dinamarquês "Noma", do chef René Redzepi. O local já havia sido consagrado em 2010, 2011 e 2012. Esta como as outras 49 escolhas do ano passado desagradaram sobremaneira, por exemplo, os cozinheiros franceses, já que a França, o grande berço da tradicional arte da gastronomia mundial, que engloba o estudo da relação do homem com sua alimentação, seu meio ambiente e seu entorno, tem sido pouco representada nesses concursos. Alegaram também, e com razão, que entre os jurados estavam cozinheiros que poderiam figurar na lista final dos possíveis ganhadores. A velha e conhecida maracutaia.
Em junho de 2015 se reuniram mais uma vez em Londres esses julgadores. E a polêmica foi novamente a tônica. Pela Internet foi lançada uma petição solicitando que os patrocinadores públicos e privados do concurso deixassem de financiar e apoiar a lista dos concorrentes, considerada “opaca”. Representantes da Advanced Food Products (AFP), promotora da iniciativa nas redes sociais, falaram abertamente em corrupção. Às vésperas do conclave já havia quase 400 assinaturas a favor do pleito dissidente, entra as quais se destacavam a do francês Jöel Robuchon e a do italiano Giancarlo Perbellini. Mais uma investida contra as técnicas e métodos do concurso: a maneira de eleger os votantes, o desequilíbrio entre regiões, a falta de verificação de que os julgadores tenham efetivamente ido aos restaurantes em disputa, etc.
A classificação dos "50 melhores", afinal, se estabeleceu a partir da compilação das propostas de um jurado de 972 "expertos independentes", repartidos em 27 regiões do mundo, no seio do qual cada um deveria eleger sete estabelecimentos por ordem de preferência. Mas, para o citado chef Robuchon, este sistema continuava longe de ser infalível: os membros do júri deveriam ter visitado e comido nos restaurantes concorrentes pelo menos uma vez nos últimos 18 meses. Não havia provas dessas visitas nem faturas que as comprovassem.
Em defesa da lisura do conclave posicionou-se a empresa britânica Deloitte, uma marca sob a qual dezenas de milhares de profissionais de firmas independentes em todo o mundo trabalham em colaboração, a fim de prover serviços de auditoria, consultoria, assessoria financeira, gestão de riscos, consultoria tributária e serviços relacionados. Para a referida consultora, quanto à seleção dos restaurantes, os jurados não podiam votar por estabelecimentos nos quais tivessem interesses diretos ou indiretos. Ademais, nenhum dos organizadores ou patrocinadores poderia votar, sem qualquer influencia sobre os resultados que poderiam ser verificados de maneira independente.
Definidas as eventuais marmeladas, a lista saiu triunfante, para o deleite de nós outros, que estamos à margem dessas tricas e futricas localizadas. Nela estão restaurantes consagrados em anos anteriores (entre eles o nosso D.O.M. do brasileiro Alex Atala) e alguns novos, conforme se pode constatar em
http://www.theworlds50best.com/list/1-50-winners.
O grande galardão de 2015 foi para o El Celler de Can Roca, cuja trajetória merece ser destacada. Ainda que o bairro de Taialà, em Girona-Espanha, seja o da localização do expoente número um do mundo desde sua abertura, em 1986, a história do atual líder mundial da gastronomia começa em um albergue de San Martín de Llémena, na comarca de La Garrotxa. Em 1920, o casal Joan e Angeleta Roca abre no pequeno povoado de 600 habitantes um local chamado Can Reixach, para vender comida caseira. Eram os avós dos atuais proprietários, os irmãos Joan, Josep y Jordi Roca, nascidos em 1964, 1966 e 1978, respectivamente.
À herança culinária dos “abuelos” se somou a dos pais, Montserrat e Josep, que em 1967 abriram o precursor Can Roca, no distrito de Taialà. No andar de cima do estabelecimento cresceram os três atuais proprietários, em um ambiente que logo diferenciou suas vocações futuras: o ordenado Joan foi para a cozinha, o filosófico Josep se inclinou pela oferta líquida (se autodefine como ‘camarero de vinos’) e o criativo Jordi elegeu a confeitaria.
Em 1986, os ousados e “veinteañeros” Joan y Josep, já formados na escola de hotelaria e com varias viagens à França, decidiram em casa seu plano de abrir um restaurante de alta cozinha. Seus pais, não obstante, estabeleceram uma condição: seu Celler seria um negocio à margem do originário Can Roca, que seguiria funcionando como casa de comidas. O Celler de Can Roca inaugurou em um local estabelecido ao lado da casa de comidas dos genitores. Com os anos, sua proposta de alta gastronomia foi recebendo o influxo da vanguarda culinária gerada pelo catalão El Bulli, do mestre Ferrán Adriá, de onde a Espanha ganhava terreno à França.
O primeiro prato que saiu da cozinha do “melhor do mundo” foi uma merluza com calda de alho e alecrim. Paralelamente, Josep foi construindo sua carta de vinhos, que hoje possui 30 mil garrafas com 3.360 referências. Ultrapassados os primeiros anos, Jordi aderiu ao negócio, especializando-se finalmente na “pastelería”, de onde logrou o título de melhor confeiteiro do mundo.
Com a tríplice vocação diferenciada dos proprietários, a clientela foi lotando as mesas do estabelecimento. Desde 2011, El Celler de Can Roca não tem carta fixa e funciona com menús-degustação de 170 e 195 Euros, sem incluir bebidas. As opções variam a cada temporada, refletindo a capacidade criativa dos três irmãos. Com 40 lugares e apoiado por 70 profissionais, o restaurante atende a 21 mil comensais por ano. Em 2014, os Roca destinaram US$ 450 mil aos investimentos em tecnologia e 12 mil horas à pesquisa, para criar 58 novos pratos. Hoje, têm até um livro que descreve a saga vitoriosa da família.
Com três “sois” no Guia Repsol e três estrelas no Michelin, o restaurante de Girona materializa um sonho: a reserva de suas mesas se abre no primeiro dia de cada mês e se esgota em minutos, com pelo menos 12 meses de antecipação.
Uma curiosidade: a família Roca possui também a sorveteria Rocambolesc, com sede em Girona, Sant Feliu de Guíxols e Madrid. Ali se vendem seis tipos diferentes de sorvetes, em casquinha ou copinho,
com até 34 divertidos “toppings”, para que assim cada consumidor possa configurar o produto final a seu gosto. Outro item destacado do local é um kit para preparar em casa, no qual se incluem “un embalaje completo con el barbapapá, la guayaba, el dulce de leche, el yogurt de oveja y el helado de leche de oveja de la raza ripollesa”.
É só viajar à Espaha para conferir.
Silvio Assumpção
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